Com o endeusamento dessa teoria, a real e
efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses organizados do
mercado sob a forma de cartéis e oligopólios, e sob a forma de atuação dos
atravessadores financeiros, se torna completamente invisível conceitualmente.
Transcrição do livro A elite do atraso (o título e destaque acima são da edição deste
blog)
A noção
de patrimonialismo (demonização da política e do Estado – não do mercado -, em
especial quando o Estado é governado por líderes populares) é falsa por duas
razões: primeiro as elites que privatizam o público não estão apenas e nem
principalmente no Estado, e o real assalto ao Estado é feito por agentes que
estão fora dele, principalmente no mercado. A elite que efetivamente rapina o
trabalho coletivo da sociedade está fora do Estado e se materializa na elite do
dinheiro, ou seja, do mercado, que abarca a parte do leão do saque.
A elite
estatal e política fica literalmente com as sobras, uma mera percentagem,
mínima em termos quantitativos, dos negócios realizados. Cria-se aí a corrupção
dos tolos, que vemos hoje no Brasil. A atenção se foca na propina, nos “3% dos
Sérgio Cabral” da vida, e torna invisível o assalto ao trabalho coletivo como
um todo em favor de meia dúzia de atravessadores financeiros. O principal
efeito da noção de patrimonialismo é tornar esse dado, que é o mais importante,
literalmente invisível; depois o patrimonialismo como privatização do bem
público, suprema “viralatice”, é percebido como singularidade brasileira, como
se o Estado apenas aqui fosse privatizado.
Na
verdade, o Estado é privatizado em todo lugar, e a noção de patrimonialismo
apenas esconde mais esse fato fundamental, possibilitando uma dupla
invisibilização: dos interesses privados que realmente dominam o Estado; e do
rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os
estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma
moralidade superior. A atual destruição da Petrobras – sob acusação de
corrupção patrimonialista, como se as petroleiras estrangeiras que irão
substituí-la também não o fossem e em grau seguramente muito maior – é um
perfeito exemplo prático dos efeitos vira-latas dessa teoria.
O
cidadão, devidamente imbecilizado pela repetição do veneno midiático, pensa
consigo: “é melhor entregar a Petrobras aos estrangeiros do que ela ficar na
mão de políticos corruptos”. Tudo como se a suprema corrupção não fosse
entregar a uma meia dúzia a riqueza dos todos que poderia ser usada, como
estava previsto o pré-sal, para alavancar a educação de dezenas de milhões.
De resto,
a oposição entre o público e o privado assume a forma do senso comum que
percebe apenas o Estado como uma configuração de interesses organizados. Assim
se oporia ao Estado e representaria a esfera privada apenas os sujeitos
privados, pensados como instância de uma intencionalidade individual. Sendo a
esfera privada percebida como individual, o homem cordial de Sérgio Buarque (de
Holanda), então o mercado capitalista e competitivo é tornado literalmente
invisível na sua positividade e eficácia. A partir de Raymundo Faoro,
inclusive, o mercado é percebido como o verdadeiro céu na terra, prenhe de
virtudes democráticas que apenas o Estado não permite florescer.
Em
resumo, a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses
organizados do mercado sob a forma de cartéis e oligopólios, e sob a forma de
atuação dos atravessadores financeiros, se torna completamente invisível
conceitualmente. Melhor legitimação dos piores interesses de uma elite do saque
e da rapina do trabalho coletivo me parece impossível. No entanto, boa parte da
esquerda – além de toda a direita obviamente – tem esses autores e suas ideias
como interpretações intocáveis e irretocáveis para o Brasil de hoje.
De ‘A elite do atraso – Da escavidão à Lava Jato – Um livro
que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade cruel
forjada na escravidão’, de autoria do sociólogo brasileiro Jessé Souza (páginas
136/137) – editora Casa da Palavra/LeYa.
O fragmento do livro a ser postado em seguida será sobre o populismo –
“o desprezo secular e escravocrata pelas classes populares”.
Já foi postado aqui neste Blog Evidentemente:
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