Não tivemos no Brasil a experiência
europeia da televisão pública. Aqui, o interesse unicamente comercial de
grandes conglomerados na área da comunicação foi a regra.
A ausência de pluralidade de informações
e opiniões na grande imprensa gera seres humanos facilmente influenciáveis e
manipuláveis e incapazes de pensar por si mesmos.
Transcrito do livro A elite do atraso (o título e destaque acima são deste blog)
A
televisão europeia e, em pequena parte, até a norte-americana, é marcada pelo
advento da televisão pública.
A
televisão pública não se confunde com televisão estatal, embora a maioria das
televisões públicas europeias tenha surgido como televisões estatais.
Considerações como as que preocupavam Habermas (Jürgen Habermas, filósofo e
sociólogo alemão), como a independência do conteúdo televisivo de interesses
políticos e econômicos de ocasião, foram fundamentais para que as televisões
estatais pudessem se transformar em televisões pública. Essa passagem se deu em
praticamente todos os países de democracia mais sólida como França, Alemanha,
Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal. O fortalecimento da democracia e da
cidadania, no pós-guerra, impôs o controle público, a participação da sociedade
na gestão das emissoras e a criação de conselhos de representantes de partidos,
associações e igrejas diversas.
As
televisões públicas quase sempre possuem estrutura semelhante a grêmios ou
conselhos, que controlam a empresa e o conteúdo de sua programação. Esses
conselhos, e isso é essencial para seu caráter público, independentemente do
Estado e do mercado, refletem uma pluralidade social onde todo tipo de
interesse significativo, patronal e dos trabalhadores é representado. Esses
interesses são defendidos por múltiplos sindicatos, partidos, representantes
religiosos, representados na direção da televisão pública. Essa é a origem de
televisões públicas como a BBC inglesa, a TVE espanhola, a France Televisón, a
RAI italiana, a RTP de Portugal, a ARD e a ZDF, alemãs, entre outras. Os EUA e
o Candá também têm TVs públicas, a PPS e a CSA, respectivamente.
Esse,
infelizmente, não foi o desenvolvimento da imprensa e da televisão no Brasil
moderno. Aqui, o interesse unicamente comercial de grandes conglomerados na
área da comunicação foi a regra. Todo o poder de fogo, de pressão e de ameaça e
chantagem do poder político foi utilizado para destruir no nascedouro, por
exemplo, uma televisão pública entre nós. Presa unicamente do interesse
comercial, sem a concorrência de televisões públicas como no contexto europeu,
esse tipo de imprensa, em vez de ser instância de mediação da esfera pública,
assegurando a circulação dos argumentos em disputa, pode (pôde) então
transformar-se em arregimentadora e instrumento de interesses privados que são
expostos como se fossem públicos. A Rede Globo vicejou nesse contexto.
Desse
modo, o círculo discursivo se quebra no seu primeiro e principal elo da
transmissão pública dos argumentos. O público de pessoas privadas perde a
possibilidade de construir uma opinião autônoma e independente a partir da
pluralidade dos argumentos em debate. Os telejornais e programas de debate da
TV Globo e outros canais com pessoas que refletem a mesma opinião criam uma
fraude evidente. A semelhança de opiniões visa criar, em um público sem padrão
de comparação, um arremedo de debate. Abre-se caminho para todo tipo de
manipulação midiática como a que ocorreu recentemente entre nós.
A
colonização da esfera pública pelo dinheiro evita aquele tipo de racionalidade
que permite a união entre verdade e justiça. Só a pluralidade de informações e
de opiniões assegura aproximações sucessivas à verdade. E apenas esse esforço
de aproximações sucessivas para restaurar a verdade factual permite escolha
autônoma, ou seja, moralidade refletida como um atributo dos sujeitos
envolvidos nessa forma de aprendizado coletivo. A ausência de pluralidade de
informações e opiniões na grande imprensa gera seres humanos facilmente
influenciáveis e manipuláveis e incapazes de pensar por si mesmos. É o que
temos hoje entre nós.
(...)
Como nos programas de debate da TV Globo, tudo funciona como se houvesse
debate, ou seja, opiniões divergentes em disputa, quando, na verdade, temos a
ver uma farsa, um teatro, precisamente como na esfera pública feudal. A elite
do atraso construiu a esfera midiática adequada a seus fins.
De ‘A
elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato – Um livro que analisa o
pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade cruel forjada na
escravidão’, de autoria do sociólogo brasileiro Jessé Souza (páginas 126/127/128)
– editora Casa da Palavra/LeYa.
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