A
demonização da política e do Estado (patrimonialismo) e a estigmatização das
classes populares (populismo) constituem o alfa e o ômega do conservadorismo da
sociedade brasileira cevado midiaticamente todos os dias.
Transcrito
do livro A elite do atraso (o título e destaque acima são deste blog)
Todo o discurso elitista e conservador do
liberalismo brasileiro está contido em duas noções que foram desenvolvidas na
USP (Universidade de São Paulo) e que depois ganharam o Brasil: as ideias de
patrimonialismo e de populismo. Ganhar o mundo não significa que os
intelectuais e o campo científico passam a estudá-las seriamente e tê-las como
referência em seus trabalhos. Embora isso também aconteça, não é nem de longe o
aspecto mais significativo. Significativo é que a esfera pública passa a pensar
o país a partir dessas categorias.
Isso não acontece, como aliás nada no mundo social,
espontaneamente. Isso só ocorre porque a grande imprensa irá reverberar essas
categorias em praticamente todas as análises e torná-las consagradas, ou seja, ideias
evidentes para além de debate e discussão. É assim que se consegue transformar
uma ideia em uma arma política letal: quando ela passa a ser aceita como evidência
não refletida, inclusive, por quem não tem nada a ganhar com ela.
As principais pessoas ligadas ao surgimento dessas
ideias já comprovam nossa tese de sua influência avassaladora: Sérgio Buarque
(de Holanda) como criador da noção de patrimonialismo – continuada por Raymundo
Faoro e vários outros – entre nós, e Francisco Weffort, um pouco mais tarde,
como adaptador da ideia de populismo ao contexto brasileiro. Que essas ideias
conservadoras passam a dominar tanto a direita como a esquerda do espectro
político fica claro como a luz do Sol. É do livro clássico de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, que o PSDB, o partido
orgânico das elites paulistanas, hoje associado ao rentismo, retira todo o seu
ideário e seu programa partidário. Ao mesmo tempo, a sala nobre da Fundação
Perseu Abramo, do PT, tem também seu nome. Maior símbolo da colonização da
esquerda pelo liberalismo conservador da elite conservadora parece-me
impossível.
Francisco Weffort, que foi também um dos fundadores
do PT – como o próprio Sérgio Buarque – e depois ministro da cultura de FHC,
sistematizou entre nós a outra ideia-força do liberalismo conservador: a do
populismo como categoria explicativa do comportamento das classes populares na
política. Como a ideia de patrimonialismo e de corrupção apenas estatal, a
ideia de populismo também é pensada, inicialmente, para estigmatizar o legado
de Vargas. Por extensão ela será usada para estigmatizar qualquer presença das
massas na política.
Efetivamente, adornado com o prestígio científico da
noção de populismo, o desprezo secular e escravocrata pelas classes populares
ganha uma autoridade inaudita e passa a ser usado com pose de quem sabe muito.
Juntas, a demonização da política e do Estado e a estigmatização das classes
populares constituem o alfa e o ômega do conservadorismo da sociedade
brasileira cevado midiaticamente todos os dias desde então.
Além dessas similitudes entre seus criadores que
navegam com o mesmo impulso na direita e na esquerda, as duas ideias possuem
outra semelhança que salta aos olhos: ambas não valem um tostão furado sob o
ponto de vista científico.
De ‘A elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato –
Um livro que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade
cruel forjada na escravidão’, de autoria do sociólogo brasileiro Jessé Souza
(páginas 134/135/136) – editora Casa da Palavra/LeYa.
Depois farei mais duas postagens: uma sobre o patrimonialismo
e outra sobre o populismo.
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