A
classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados secularmente pelo
povo. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão nunca
verdadeiramente compreendida e criticada entre nós.
Para
que se possa odiar o pobre e o humilhado, tem-se que construí-lo como culpado
de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador.
Se
possível, deve-se humilhá-lo, enganá-lo, desumanizá-lo, maltratá-lo e matá-lo
cotidianamente. Era isso que se fazia com o escravo e é exatamente a mesma
coisa que se faz com a ralé de novos escravos hoje em dia.
Transformava-se
o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema, como “coisa de preto”, e
depois se espantava que o negro não enfrentasse o trabalho produtivo com a
mesma naturalidade que os imigrantes estrangeiros, para quem o trabalho era
símbolo de dignidade.
Dificultava-se
de todas as formas a formação da família escrava e nos espantamos com as
famílias desestruturadas dos nossos excluídos de hoje, mera continuidade de um
ativismo perverso para desumanizar os escravos de ontem e de hoje.
Os
escravos foram sistematicamente enganados, compravam a alforria nas minas e
eram escravizados novamente e vendidos para outras regiões, eram brutalizados,
assassinados covardemente. A matança continua também agora com os novos
escravos de todas as cores.
O Brasil tem mais assassinatos – de
pobres – que qualquer outro país do mundo
O
Brasil tem mais assassinatos – de pobres – que qualquer outro país do mundo.
São 60 mil pobres assassinados por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes
hoje declarada e aberta.
Construiu-se
toda uma percepção negativa dos escravos e de seus descendentes como feios,
fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica,
povoando o cotidiano com ditos e piadas preconceituosas, e hoje muitos se
comprazem em ver a profecia realizada.
A
concepção que um ser humano tem de si mesmo não depende de sua vontade e é
formada pela forma como o indivíduo é percebido pelo seu meio social maior. É
isso que significa dizer que somos produtos sociais. Nos tornamos, em grande
medida, aquilo que a sociedade vê em nós.
O
Brasil não simplesmente abandonou os escravos e seus descendentes à miséria. Os
brasileiros das classes superiores cevaram a miséria e a construíram
ativamente. Construiu-se uma classe de humilhados para assim explorá-los por
pouco e para construir uma distinção meritocrática covarde contra quem nunca
teve igualdade de ponto de partida.
Não
se entende a miséria permanente e secular dos nossos excluídos sociais sem esse
ativismo social e político covarde e perverso de nossas classes “superiores”.
Mais um aperitivo para a leitura de ‘A elite do atraso – Da escravidão à Lava
Jato – Um livro que analisa o pacto dos donos do poder para perpetuar uma
sociedade cruel forjada na escravidão’, do sociólogo Jessé Souza (páginas 169/170)
– editora Casa da Palavra/LeYa. (O título, o intertítulo e a disposição dos
parágrafos são da edição deste blog)
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