(Foto: reproduzida do Brasil 247) |
“É essa imprensa, poderosíssima,
que escolhe as vítimas e seus protegidos, que elege os inimigos públicos
escolhendo-os entre seus adversários de classe, elege os réus e os julgadores e
aos julgadores dita as penas a serem aplicadas, independentemente do aparato
normativo”.
“O projeto de hoje é a
institucionalização da exceção jurídico-política dentro da ordem formalmente
democrática. Estamos nas primícias de uma inflexão autoritária declarada contra
os interesses populares e a soberania nacional”.
“Fragilizado o governo,
fragilizadas as estruturas partidárias de esquerda, o ex-presidente Lula se
afigura como o último obstáculo a esse projeto. Precisa, pois, ser removido do
caminho. Por isso mesmo foi condenado pelo tribunal de exceção da grande
imprensa”.
Por Roberto
Amaral (cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003
e 2004) – reproduzido do site Brasil 247,
de 04/03/2016 (o título e destaques acima são da edição deste blog)
ROBERTO AMARAL: O IMPEACHMENT DE
LULA
“Quando se me impõe a solução de um caso jurídico
ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam:
volto-me para dentro de mim mesmo e dou livremente a minha opinião, agrade ou
desagrade a minorias ou maiorias”.
Estas palavras são de Rui Barbosa, em carta
dirigida a Evaristo de Morais, o grande advogado, incitando-o a assumir a
defesa de José Mendes Tavares, réu previamente condenado pelo que então se
chamava de ‘opinião pública’. Trata-se, como se vê, de lição extremamente
atual, quando o STF de nossos dias assume a responsabilidade de violar a
Constituição brasileira sob a alegativa de estar atendendo ao ‘clamor das
ruas’.
Refiro-me à decisão de liberar a execução da pena
de prisão após condenação confirmada em segundo grau, ao arrepio do ditado
claro da Constituição (Art. 5º, LVII): “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Legalizando a prisão antes de definitivamente estabelecida a culpabilidade do
acusado, o STF torna-se agente de um direito criminal promotorial, penalista,
punitivista, reacionário, atrasado.
Caminhando na contramão da moderna criminologia,
torna-se caudatário do conservadorismo e se faz instrumento do processo em curso
de regressão política que visa à construção de um Estado autoritário, promovido
ideologicamente pela grande imprensa.
Só o direito do arbítrio, o direito da força que
anula a força do direito, pode autorizar, como acaba de fazer o STF, a execução
da pena cerceadora de liberdade enquanto ainda se duvida se o acusado é culpado
ou inocente.
A prisão, nessas circunstâncias, deixa de ser o ato
final de um processo condenatório para transformar-se no momento inaugural das
investigações, que se abrem não para apurar fatos e responsabilidades, mas para
provar a culpabilidade do acusado escolhido para ser condenado.
Nesse contexto, a ‘delação premiada’ é instrumento
de barganha que a autoridade investigadora manipula a fim de obter do acusado
preso não necessariamente a apuração de possível crime, mas a revelação
selecionada de acusações contra quem a investigação quer condenar. Alegar, como
justificativa dessa agressão jurídica, a audiência das ruas, é, no mínimo, um
escárnio.
Nas ruas de Berlim sob o nazismo multidões
ensandecidas julgavam e puniam seus adversários. Turbas envenenadas pela
propaganda estimulavam a perseguição aos dissidentes, condenados aos campos de
concentração, independentemente de culpa, mas simplesmente por serem judeus,
comunistas ou homossexuais.
No vestibular da Guerra Fria o macarthismo, sem
precisar refazer a Constituição ou as leis, instalou nos EUA a perseguição
política e o terror, em nome de um nacionalismo xenófobo e de um anticomunismo
de indústria.
Aqui, a implantação da última ditadura, em 1964,
foi precedida de maciça mobilização da opinião pública, levada a cabo pela
imprensa, animadora das marchas ‘com Deus pela liberdade’.
Esse especioso ‘clamor das ruas’ é o outro lado do
discurso único de uma imprensa monopolizada, unificada pelo ódio, pela vindita
e pelo projeto comum de poder, aquele poder reiteradamente negado às forças
conservadoras pelo processo eleitoral.
É essa imprensa, poderosíssima, que escolhe as
vítimas e seus protegidos, que elege os inimigos públicos escolhendo-os entre
seus adversários de classe, elege os réus e os julgadores e aos julgadores dita
as penas a serem aplicadas, independentemente do aparato normativo, porque na
sua aplicação é sempre possível torcer e distorcer a lei, ou criar doutrina
nova, como a teoria do domínio do fato, ou refazer-se a jurisprudência, segundo
o viés de maiorias ocasionais.
Essa coalizão de direita dirige a política, dita a
pauta do governo em minoria legislativa e popular para o que tem sido decisiva
a oposição midiática. Essa coalizão dita o discurso oposicionista que impõe ao
governo o receituário do neoliberalismo.
Essa coalizão comanda a privatização e a
desnacionalização, põe de joelhos um Congresso que tem em Renan Calheiros e
Eduardo Cunha, seus líderes, o melhor indicador de sua decadência e de seu
descompromisso com a sociedade, a ética e o País.
De costas para os interesses das grandes massas,
cuja emergência política tira-lhe o sono, a classe dominante, despida da
legitimidade da soberania popular, impõe seus interesses sobre os interesses da
nação e do País.
A cantilena reacionária dos meios de comunicação é
um de seus instrumentos de dominação, o mais eficaz quando se trata da luta
ideológica. Foi assim no enfrentamento ao governo Vargas, foi assim na campanha
contra Jango e o pleito das reformas de base, foi assim contra Lula e é assim
contra Dilma. Foi assim e pelos mesmos motivos a destruição de Leonel Brizola,
empreendida pelo sistema Globo.
O projeto de hoje é a institucionalização da
exceção jurídico-política dentro da ordem formalmente democrática. Estamos nas
primícias de uma inflexão autoritária declarada contra os interesses populares
e a soberania nacional.
Daí a necessidade de destruir as organizações
populares de esquerda e seus ícones, se possível desmoralizando-os moralmente
diante da sociedade que sempre os respaldou.
Daí o concerto de ações. Para levar a classe-média
a defender os interesses das elites, a estratégia política é a de sempre: jogar
as lideranças de esquerda na vala comum da corrupção onde o capitalismo se
banqueteou e se banqueteia.
Eis por que, a serviço desse poder sem peias, sem
limites éticos ou legais, as estruturas estatais – os órgãos de investigação, a
polícia, os ministérios públicos, as instâncias judiciais, os juízes de
primeira instância e os tribunais superiores, a receita federal etc. – têm,
hoje, uma só missão: provar que Luiz Inácio Lula da Silva é um político
corrupto.
A desconstrução do líder popular integra o projeto
que compreende a deposição da presidente, a destruição do PT e, a partir dela,
a destruição e desmoralização das esquerdas brasileiras.
Assim estará aberto o caminho para a tomada do
poder pela direita, pelo conservadorismo, pelo atraso, pelo fundamentalismo
político, revogando ou reduzindo as conquistas sociais e derruindo a soberania
nacional com a retomada do entreguismo e da onda das privatizações a serviço da
desnacionalização: já agora, ante a passividade de um governo fragilizado, os
mais lucrativos ativos da Petrobras (entre eles poços em atividade) são vendidos
na bacia das almas e o Senado intenta doar o pré-sal – promessa de nosso
desenvolvimento autônomo – às grandes petroleiras multinacionais.
A mudança política desta feita é operada sem golpe
de Estado clássico, sem apelo às armas, sem nova ordem constitucional, sem
novos atos institucionais. Ao contrário, efetiva-se sob o império da mesma
Constituição (mas reinterpretando-a), com o mesmo direito (mas reinventando-o)
mediante ‘interpretações criadoras’ como o ‘domínio do fato’.
O Brasil é, presentemente, um experimento de tomada
do poder por dentro do poder, uma tomada do governo por dentro do governo, sem
apelo à violência, sem ruptura constitucional, respeitada a legalidade
(reinterpretada) e dentro de seus limites formais.
Esta operação depende diretamente da fragilização
da presidente Dilma, e conta com seu recuo politico. As seguidas tentativas de
impeachment e a resistência do Congresso à sua política servem a esse
propósito. Mas não é tudo. A direita pensa longe. Ela vislumbra 2018 e alimenta
esperanças de sucesso eleitoral. Trata-se, agora, já, de inviabilizar o
eventual retorno do ‘sapo barbudo’.
Fragilizado o governo, fragilizadas as estruturas
partidárias de esquerda, o ex-presidente Lula se afigura como o último
obstáculo a esse projeto.
Precisa, pois, ser removido do caminho. Por isso
mesmo foi condenado pelo tribunal de exceção da grande imprensa.
Por isso, sua vida está sendo violentamente
invadida, exposta, num processo de humilhação a que nenhum outro homem público
foi submetido até hoje. Se afinal nada for comprovado, nenhum problema, pois a
pena previamente ditada já terá sido aplicada, mediante a execração pública a
que está sendo submetido o ex-presidente.
Esta operação, em curso, conta com o recuo, via
intimidação, do ex-presidente. Está, pois, em suas mãos o que fazer, e só lhe
resta a mobilização das massas. O Lula acuado é presa dócil. Nas ruas é
promessa de luta, resistência e avanço. Foi assim que em 2005 transformou uma
cassação iminente na consagração eleitoral de 2006.
A escolha agora é dele: sucumbir sem glória, ou
encarnar a resistência à destruição da proposta de fazer do Brasil uma nação
soberana, desenvolvida e socialmente inclusiva.
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