VENEZUELA: O QUE MAIS DÓI NÃO É A DERROTA ELEITORAL, MAS SIM A DERROTA CULTURAL - POR ARAM AHARONIAN
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Quando a direita se apropriou dos termos “mudança” e “futuro”, isso já implicava uma derrota cultural. Os projetos populares ou de esquerda se colocaram na defensiva.
Hoje, a ideia de que esta eleição foi o resultado do poder da mídia ganha terreno. Mas a mídia tinha o mesmo poder quando se obteve tantas vezes o triunfo.
Por Aram Aharonian - reproduzido do portal Carta Maior, de 20/12/2015
Sejamos claros: não é criticável que os governos tenham seus próprios relatos. Não existem governos sem relatos. Mas um tema opinável, discutível, debatível, são os conteúdos políticos dos mesmos. O maior problema não surgiu agora, durante as eleições parlamentares, mas sim muito antes, quando a narrativa sobre as conquistas da revolução chavista – pacífica, democrática – se distanciou crescentemente das percepções sociais.
Quanto mais problemas se geravam na realidade econômica, mais o governo se concentrou em impor sua narrativa sobre os anos da revolução. Difundiu sua versão até o cansaço e criou – ou acreditou que criava – um imaginário não só nacional, senão latino-americano, internacional, sobre o fato de que essas indiscutíveis conquistas pavimentavam um caminho ao sucesso eleitoral.
Essa insistência teve outro efeito, o de seguir o roteiro da síndrome de “governo sitiado”. Os assessores (espanhóis e franceses) do governo insistiram que a mensagem deveria priorizar a “defesa” do projeto contra as ameaças da guerra econômica, do “lobo” da intervenção estrangeira. Insistiram que não era momento para novos sonhos e novas conquistas. Se as grandes maiorias sempre elegeram a realidade atual em comparação com os momentos anteriores à chegada de Hugo Chávez ao poder, isso não implica que estavam dispostas a deixar de imaginar melhores futuros.
Essa armadilha da guerra midiática e cultural é uma lição: muitos dos que traçam as estratégias de comunicação em nossos países se sentem seduzidos pela síndrome do governo sitiado, buscam um relato de quem se mantém constantemente na defensiva contra as eventuais agressões externas do império. Essa postura serviu para a Cuba revolucionária dos primeiros anos do bloqueio, mas hoje é uma teoria ineficiente, e também incoerente, em países com centenas de rádios privadas, dezenas de canais de televisão, jornais, meios cibernéticos privados. Onde as chamadas redes sociais aparecem como uma ferramenta mais na transmissão de mensagens e imposição de imaginários.
Os porta-vozes oficiais, péssimos intérpretes do conceito gramsciano de hegemonia, se tornaram especialistas em denunciologia, se esquecendo da necessidade de construir uma comunicação democrática, onde todos tenham voz e imagem, onde a cidadania participe ativamente dos debates sobre a realidade e o futuro do país que está sendo construído.
A síndrome de governo sitiado gera uma estratégia reativa (de estar sempre respondendo à agenda do inimigo, validando-a), e não proativa, onde se desenha a agenda informativa, comunicacional e política a partir do que os adversários produzem. Uma agenda que não informa, apenas reage ao que o inimigo diz, tentando acertar um golpe quando já se está grogue. Isso gera, por sua vez, uma subcultura do não-debate: se há críticas, elas são dos que fazem o trabalho da direita nacional e internacional. Se não há crítica, se eliminam os mecanismos de revisão, retificação e reimpulso. É o dilema das falsas alternativas.
Desde a morte de Chávez, a Venezuela não teve acesso à informação real: o programa Alô Presidente acabou. Nunca houve uma política comunicacional, nunca se elaborou (e não se cumpriu) uma agenda informativa, comunicacional e política. Esse é um dos grandes e graves déficits da Revolução Bolivariana (desde 2001, e isso nós conversamos com Chávez em cúpulas, e avisamos em textos jornalísticos e livros).
Criar meios de comunicação foi uma medida importante, mas só isso não garantiu entregar à cidadania uma nova hegemonia: a audiência dos cinco ou seis canais oficialistas de televisão não supera um dígito. Meios públicos sem público? E para piorar, ainda existe a permanente confusão entre o público, o Estado, o governo e as instâncias partidárias.
Poucos aguentam horas e horas de consignas e discursos que se distanciam da realidade que se vive diariamente, enquanto esperam por um conteúdo que informe, forme, recrie. Por isso ninguém pode esquecer que quase três milhões de chavistas, cansados dessa realidade virtual da imprensa oficial, sequer apelaram ao voto de castigo, mas sim ao castigo da abstenção.
Qualquer crítica ao governo era interpretada como uma “arma” que o inimigo podia utilizar. “Esse aí tirou a carapuça, é um agente da CIA”, e com isso rotularam muitos militantes honestos e preocupados com o país e sua revolução. Verticalismo, burocratismo, invisibilização das maiorias, falta de transparências e a desejada democracia popular avançando de forma insuficiente. A síndrome emergiu uma vez mais como bandeira dos “novos” defensores da revolução… tão perto do governo e tão longe do povo e da sua realidade.
Muitas vezes denunciamos a manipulação midiática da direita, tentando criar imaginários coletivos que distam muito da realidade, em campanhas de terror, em favor da desestabilização dos nossos processos de construção. Discutimos muito sobre a necessidade de recriar o pensamento crítico na região… mas é mais fácil copiar o modelo do inimigo.
“Analistas” da esquerda latino-americana, “assessores” comunicacionais provenientes do “progressismo” europeu, tentam, em boa medida, impor imaginários (entre os já convencidos, entre aqueles que já apoiam a revolução chavista) muito distantes da realidade vivida pelos venezuelanos, numa espécie nivelamento por baixo do debate, que termina deixando o governo sem respostas quando acontecem derrotas eleitorais como a mais recente.
São anos vivendo na comodidade da denunciologia e do choramingo, incapazes de ter pensamento crítico, incapazes de construir uma nova comunicação, incapazes de entregar uma alternativa para a construção de novas sociedades. Ávidos em participar em qualquer fórum dedicado ao autoelogio, terminaram se tornando os algozes do esforço dos povos por mudar a história.
O discurso da direita
Quando a direita se apropriou dos termos “mudança” e “futuro”, isso já implicava uma derrota cultural. Os projetos populares ou de esquerda se colocaram na defensiva. Todos defendemos, por exemplo, a educação pública. Mas não podemos entregar à direita a análise dos problemas da educação que o povo recebe, nem podemos deixar de ter propostas transformadoras que respondam às novas demandas dos setores mais humildes. Quando o jogo político se arranja desse modo, os projetos populares devem convocar a cidadania aos debates que permitem construir uma nova imaginação, com novas ideias para o futuro
Mas isso não aconteceu, nem acontece. Não há mais a esperança de que apareça Chávez para dar um jeito nos nossos problemas. Hoje, a ideia de que esta eleição foi o resultado do poder da mídia – nacional, internacional, cartelizada e dedicada à sua campanha do terror e de desestabilização – ganha terreno. Mas a mídia tinha o mesmo poder quando se obteve tantas vezes o triunfo.
E os modos de condução dificultaram o surgimento das propostas e perfis diferenciados, que puderam alimentar e fortalecer o governo, a partir de certa diversidade. O paradoxo é que a ausência dessa diversidade interna desfez o perfil do Polo Patriótico, e ao mesmo tempo criou muita desconformidade pública no chavismo. Os níveis de conflitividade – e de desânimo das bases – foram muito agudos antes e depois da proclamação dos candidatos do PSUV para a Assembleia.
Às vezes convém aceitar quando não se tem razão, ou que não se tem toda a razão, ou mesmo que as estratégias foram equivocadas, os modos de organização, a ideia de renunciar a falar aos que não estavam convencidos em defender o projeto, em não fomentar a crítica construtiva e o debate franco, em não encarar a batalha cultural, ou não entender que ela significa muito mais que uma linda consigna. Foi através desses erros que se drenou o capital político hegemônico.
O poder fático
Por outro lado, o poder fático – basicamente o econômico-financeiro, ancorado no terrorismo da imprensa hegemônica – teve sucesso no manejo da desesperança, da frustração, da guerra econômica e das incertezas, apostando na desorientação, no esquecimento e na perda de identidade dos venezuelanos.
E o aparato burocrático partidista, o PSUV, não foi capaz de gerar esperanças. Apresentou uma lista de candidatos indicados pela cúpula, repetindo nomes resistidos pela militância, sem permitir dissensos ou debates entre as dezenas, centenas de agrupações que compõem o chamado “chavismo”.
O golpe pela perda de Hugo Chávez foi e continua sendo muito grande, ainda mais quando não houve uma ênfase em formar novos quadros políticos nesses 15 anos, e também para a gestão administrativa. Chávez construiu uma série de equilíbrios que Maduro não herdou, e não soube fazer valer, não soube conversar com a população sobre as conquistas da Revolução Bolivariana. Talvez sem perceber que essas conquistas fazem parte do passado, e que o povo espera novas esperanças, um discurso voltado ao futuro.
Não cabe a menor dúvida: Nicolás Maduro não é Hugo Chávez, embora seus assessores social-democratas europeus (franceses e espanhóis) tentem fazer o povo acreditar que sim, através dos passarinhos das redes sociais. Apesar disso, a oposição venezuelana unida conseguiu somente 400 mil votos a mais que nas presidenciais de 2013, quando Maduro se impôs por apenas um ponto percentual de diferença a Henrique Capriles. Dois anos depois, em 2015 se repetiu o mesmo: a ausência do chavismo. Dos 8,2 milhões de votos alcançados por Chávez em 2012, o apoio ao governo nas eleições parlamentares caiu em quase 2,5 milhões de votos, e 800 mil a menos os de Maduro, quando ganhou as presidenciais contra Capriles. Ausência, castigo, desilusão.
Foram entre 2,5 e 3 milhões de chavistas que ficaram de pijamas em suas casas. Eles não acreditam, de nenhuma forma, que a direita possa ou deva governar. Obviamente, as apelações à “traição” de setores do chavismo à Revolução Bolivariana não ajudam na recuperação, e a convicção de que basta ter uma máquina eleitoral bem alimentada vem se derrubando por seu próprio peso há anos, quando há um povo que, graças ao chavismo, passou de ser objeto das políticas a ser sujeito das mesmas, a acreditar no protagonismo popular num novo tipo de democracia. E que hoje parecem não confiar nos dirigentes atuais.
A campanha opositora contou com a desilusão acumulada na população – desgastada por fazer longas filas para conseguir alimentos e medicamentos –, devido à inflação, ao desabastecimento, a escassez. Ainda que a oposição e os oportunistas – entre eles vários travestidos de neoliberais – acusem o governo pela situação, este não é o único responsável por ela, embora mereça as críticas por não ter encontrado uma solução a nenhum dos problemas.
A disparada dos preços dos combustíveis é um golpe difícil de assimilar num país mono cultivador, acostumado a viver da renda petroleira, mesmo quando a crise é utilizada pela oposição – interna e externa – para golpear o governo, com pressões para romper a OPEP e manter os preços do petróleo baixo, com a acumulação de bens, com o aumento intencional dos preços, com a fraude no câmbio do dólar, com o contrabando, com a guerra psicológica alimentada pelos meios de comunicação, com sabotagens e muitas outras coisas.
Não esqueçamos que a disputa pelo poder político na Venezuela é apenas um meio para controlar a quinta parte dos hidrocarburetos do planeta.
Também se deve reconhecer que o governo de Maduro foi – até o momento – firme na defesa dos programas sociais e dos investimentos estratégicos do chavismo, mas não encontra a forma de frear a especulação, a inflação e o desabastecimento. Em quase três anos não foi capaz de elaborar nenhuma medida para suavizar a crise, enquanto tolera a corrupção e a ineficiência no seio do Estado, garantindo até agora a impunidade em meio a uma guerra econômica, num cenário de grave restrição externa.
A responsabilidade maior talvez seja dos grupos econômicos – o poder fático –, especialmente o capital financeiro e o bancário, que desde 2004 estabeleceram uma estratégia para retomar o controle do valor do câmbio e da privatização das divisas. Muitos funcionários, que tiveram total controle, desde 2009, do valor do câmbio e da estratégia especulativa de se forjar o dólar paralelo, tem nome e sobrenome, e estão montados nesta confabulação.
Maduro continua sendo presidente, e para tirá-lo deverão juntar as assinaturas necessárias que permitam convocar um referendo revocatório e oferecer alguma alternativa de golpe brando parlamentar. Enquanto isso, cabe à esquerda se livrar da mordaça e ter a audácia de dizer as coisas pelo seu verdadeiro nome.
Tradução: Victor Farinelli
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