ÁLVARO GARCÍA LINERA: “AS ONGs TÊM O DIREITO DE MENTIR E EU TENHO O DIREITO DE DENUNCIÁ-LAS”

Evo Morales e García Linera (Foto: wikipedia)
“A democracia na Bolívia está alcançando níveis extraordinários”

Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia, escreveu uma declaração sobre a liberdade de expressão e a democracia em seu país.

Por Álvaro García Linera – reproduzido do portal Carta Maior, de 21/08/2015

Prezados companheiros e companheiras:

Agradeço a generosidade que tiveram por dedicar parte do seu tempo à elaboração de uma carta dirigida à minha pessoa, com o fim de propor um “apelo à reflexão” a respeito das minhas declarações sobre o papel das organizações não governamentais (ONG´s) na Bolívia e seu financiamento.

Entendo que se preocupem com a liberdade de expressão, mas considero que essa preocupação é em vão. Contudo, vale a pena aproveitar a oportunidade de conversar, porque sempre é agradável ser recordado pelos amigos. E quando digo que sua preocupação é em vão, é porque em minhas declarações sobre as quatro ONG (Milenio, CEDIB, Fundación Tierra e CEDLA), eu jamais propus o seu fechamento, nem agora nem antes, muito menos expulsão ou restrição de suas atividades. Vocês bem sabem que na Bolívia a liberdade de expressão e associação não só constituem direitos civis como também representam componentes indissolúveis da vida, da história e do desenvolvimento das sociedades democráticas, das organizações e dos movimentos sociais. A própria democracia só pode ser compreendida sobre a base inegociável da liberdade de associação e pensamento.

Hoje, a democracia na Bolívia está alcançando níveis de profundidade e irradiação extraordinários, devido a uma administração do Estado por parte das organizações sociais indígenas, camponesas, operárias, comunitárias e populares, cuja vida se alimenta da liberdade de ideias e múltiplas formas organizativas. Viemos dessa raiz. E para aqueles que, como eu, tiveram que suportar a repressão e a prisão nos tempos neoliberais, pelo crime de pensar diferente, está mais que claro que o horizonte socialista e plurinacional só pode se construir com base na ampliação dos princípios democráticos de liberdade de pensamento e associação.

Nesse contexto “e fazendo uso da minha liberdade de pensamento e expressão”, afirmei que quatro ONG´s mentêm e camuflam seu ativismo político reacionário sob o manto de atividade “não governamental”. Por acaso, elas têm o direito de mentir? Claro que sim, mas, por outro lado, eu tenho o direito de denunciá-las, e de esclarecer as falsidades escritas em suas “supostas” investigações, que se parecem mais com decálogos sobre suas convicções políticas ou primitivos perfis de estudo. Assim como os funcionários destas ONG’s têm o direito constitucional de fazer política partidária informal através de suas organizações, eu tenho o direito de dizer que elas estão jogando o papel de substitutos dos partidos políticos de direita, e que seus funcionários não fazem outra coisa, a não ser recrutar adeptos a partir dessa roupagem nova, de atividades hipócritas “não lucrativas”, devido ao reiterado fracasso pela via da política aberta.

Essas quatro ONG’s bolivianas têm todo o direito de existir, funcionar, investigar e inclusive de fazer política; entretanto, nós temos o direito e a necessidade - assim exige o movimento popular que conduz o processo revolucionário na Bolívia – de criticar sua surpreendente sintonia ideológica com o discurso meio ambientalista emitido e financiado a partir dos centros imperiais.

Todos concordamos em que é necessário uma ordem sócio produtiva que substitua a lógica predadora da natureza impulsionada pelo valor de câmbio. Porém aqui existem ao menos duas posições. A primeira corresponde ao discurso imperial, promove a mais valia meio ambiental, que sustenta o desenvolvimento dos países do norte custeado pelos países do sul, congelando assim as melhoras de suas condições de vida e petrificando as relações coloniais de pobreza e submetimento (submissão) construídas ao longo dos séculos, e ainda hoje vigentes. Essa posição está claramente expressada na proposta meio ambientalista da USAID a respeito da Amazônia, e na sugestão do gabinete de Tony Blair para a implantação de uma administração transnacional na mesma região. Em contraste com essa posição, para as nações indígenas soberanas, uma nova sociedade meio ambiental só será possível terminando com a condição colonial de fragmentação e pobreza prevalecente nas populações e nas nações do sul. Se trata de criar uma civilização ecológica a partir da combinação de saberes ancestrais e contemporâneos, capazes de restituir um metabolismo gestativo entre a natureza em si e a natureza voltada à sociedade. Entretanto, isso não se poderá alcançar simplesmente imitando o que sucede no norte (ilusão desenvolvimentista), e muito menos congelando as condições de vida dos povos do sul (colonialismo petrificado). Esta civilização só pode surgir se somos capazes de proporcionar as mínimas condições para a existência, de satisfação das necessidades básicas, que permitam liberar as capacidades criativas e cognitivas dos povos para a criação dos fundamentos de uma sociedade ecológica, que só será possível se tiver um carácter comunitário e universal.

Nesse sentido, os que foram advertidos com uma possível expulsão foram os organismos internacionais, ONG’s e governos estrangeiros que financiam e se envolvem em atividades políticas, que agem contra os interesses do Estado Plurinacional da Bolívia e o processo revolucionário do povo, que vem se desenvolvendo nos últimos dez anos. Se trata de um princípio de soberania e dignidade elementar para qualquer Estado democrático e, para mim, enquanto eventual servidor público, não só está ajustado ao direito como também à obrigação moral e intelectual de se opor a qualquer tipo de interferência nas atividades políticas internas.

O núcleo do neoliberalismo contemporâneo, que destruiu direitos, recursos naturais e associatividade social no mundo inteiro, não é a substituição da soberania nacional por um tipo de mundialização desterritorializada do poder. Basta ver as muralhas de cimento e aço que os supostos Estados desenvolvidos levantam dia após dia, graças ao fluxo de força de trabalho, para compreender que existe uma tentativa de trocar a soberania nacional de todos os países pela soberania nacional de alguns poucos, que pretendem decidir qual será o destino dos outros.

O restabelecimento dos princípios da soberania nacional, ou seja, a autodeterminação, é um dos pilares para a desmontagem da ordem neoliberal na Bolívia. Nos referimos à autodeterminação como Estado para definir a gestão dos recursos e do modo de relacionamento com os outros Estados, e também à autodeterminação social, para definir o horizonte como comunidade política na história.

Essa é a razão principal pela qual decidimos - como governo soberano – expulsar o FMI dos escritórios privados que o organismo tinha no Banco Central da Bolívia (BCB), e também a CIA, que tinha escritórios dentro do Palácio de Governo, o corpo militar norte-americano, que tinha sua base extraterritorial num aeroporto da Amazônia boliviana, a USAID e o embaixador dos Estados Unidos, que conspirava junto com grupos separatistas de extrema direita, apoiando a divisão do país em microrrepúblicas sob tuição estrangeira (sob patrocínio estrangeiro).

A autodeterminação nacional é uma dimensão da autodeterminação social, e nenhuma revolução poderá avançar no aprofundamento dos direitos democráticos da sociedade sem a consolidação das condiciones de soberania estatal. É impossível definir o horizonte interior de uma sociedade (o pós-neoliberalismo, o viver bem, o socialismo, etc.), sem definir seu horizonte externo, sem ser soberano. Por isso, não podemos permitir que nenhum governo de fora, empresa ou organização para-governamental estrangeira definam as políticas públicas do Estado Plurinacional da Bolívia. Caso contrário, nos estaríamos submetendo a um neocolonialismo.


Todo esse cenário permite que eu retome os comentários sobre as quatro ONG’s citadas, as que eu disse que mentiam e defendiam os interesses da direita política internacional. A preocupação sua é compreensível, pois lhes mentiram. Vocês se alarmaram porque elas lhes contaram que eu havia proposto expulsá-las. Nada mais falso! Quem eu adverti com a expulsão do país, foram os organismos estrangeiros que se intrometem em atividades políticas, que melam a soberania do Estado Plurinacional da Bolívia. Com isso, fica plenamente demonstrado que essas ONG’s mentem, e o fazem de tal maneira, que conseguem que pessoas bem intencionadas apoiem, às vezes sem perceber o discurso imperial, orientado a criar suspeitas sobre a vigência das liberdades democráticas e dos direitos civis dos regimes revolucionários e progressistas da América Latina. Ainda assim, mencionei que as tais ONG’s faziam política partidária de direita, apoiando o discurso meio ambientalista imperial. Uma revisão rápida dos seus argumentos, e posterior comparação com os expostos pela USAID a respeito da Amazônia, comprova o fato imediatamente.

Portanto, vocês compreenderão que assim como nós respeitamos a opinião política de todos na Bolívia, na minha qualidade de cidadão – e mais ainda como servidor público - não tenho porque me calar nem ocultar as mentiras destas ou de qualquer outra instituição que tente causar danos ao processo revolucionário pertencente às organizações sociais do país. A defesa inegociável da revolução boliviana, interna e externamente, é para mim algo irrenunciável, como o próprio direito à liberdade de expressão e associação.

Lamento profundamente que tenham sido utilizados por estas quatro ONG’s em sua tentativa de simular uma imagem autoritária de - bem sabem vocês - um dos países mais democráticos do mundo. Não obstante, se o que está por trás dessa desavença passada é a sua boa vontade para debater horizontes revolucionários ou progressistas para o nosso país e para o mundo, serão bem-vindos sempre.

Um abraço afetuoso,
Cidadão Álvaro García Linera
 

Tradução: Victor Farinelli

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