(Foto: AFP/Página/12) |
Papa Francisco: “Insisto, digamos
sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança das estruturas.
Este sistema já não se aguenta, não o aguentam os camponeses, não o aguentam os
trabalhadores, não o aguentam as comunidades, não o aguentam os povos... E
tampouco o aguenta a Terra, a irmã mãe terra, como dizia São Francisco”.
Por Washington
Uranga (jornalista uruguaio vivendo na Argentina) – no jornal argentino Página/12, edição impressa de
12/07/2015
Francisco
não deixa de surpreender a todos. O Papa se pronuncia frente à injustiça no
mundo, toma posição e convoca à luta. No Brasil em 2013 construiu uma frase (“Façam
confusão”) hoje convertida em slogan para muitos católicos e para os que, sem
sê-lo, compreendem o sentido da mensagem. Agora, em seu primeiro giro latino-americano,
Francisco pediu que “não se apequenem!” diante da magnitude da tarefa que têm
os que lutam pela mudança das estruturas injustas. Aos representantes de
movimentos sociais de todo o mundo lhes disse que “vocês, os mais humildes, os
explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito (...) nos grandes processos
de mudança, nacionais, regionais e mundiais”. Incentivou-os a se organizarem
porque “me atrevo a lhes dizer que o futuro da humanidade está, em grande
medida, em suas mãos”. Convidou-os à “participação protagonista” e a “promover
alternativas criativas”, na busca cotidiana dos “três T... trabalho, teto e
terra”. Tudo isso diante dum auditório muito diverso e sem maioria católica. Foi
quase uma pregação num giro que teve um forte tom político.
Dada a densidade conceitual, política e doutrinária
de muitos dos discursos pronunciados por Francisco durante sua visita ao Equador,
Bolívia e Paraguai resulta difícil fazer uma síntese que expresse realmente tudo
o que foi dito. Quem escreve o tentará, mas não sem deixar aberto o convite aos
leitores para que repassem a íntegra dos textos papais. Vale a pena. Vários deles
incluem perspectivas que até não faz muito tempo eram impensadas na boca da
máxima autoridade da Igreja Católica mundial. Do mesmo modo que apenas três ou quatro
anos atrás tampouco teria sido possível imaginar esses mesmos ditos em palavras
do então cardeal Jorge Bergoglio. Mas estas especulações perderam relevância diante
da contundência dos fatos e dos gestos papais e do que isso significa como
aporte em busca de uma sociedade mais justa a nível planetário. Uma lúcida
reflexão num sentido análogo escreveu Atilio Boron ontem (dia 11) nestas mesmas
páginas.
Como “locatário”: com os pés em sua terra
O dito e feito pelo Papa nestes dias não rompe com
a linha de seu magistério anterior, mas a reforça no conceitual e no simbólico.
Alguém poderia dizer com muita razão que Jorge Bergoglio escolheu seu primeiro
giro latino-americano para aprofundar o posicionamento
político-ideológico-cultural-evangélico com o qual vem surpreendendo a sociedade
quase desde o primeiro dia em que assumiu como máxima autoridade da Igreja
Católica em 13 de março de 2013.
Equador, Bolívia e Paraguai se contam entre os
países mais pobres da região. Nesse contexto o Papa escolheu falar. Também com
o marco da igreja latino-americana que lhe serve de inspiração e que o catapultou
para o papado especialmente depois de sua participação muito protagonista na
Conferência Geral dos Bispos Latino-americanos em Aparecida (Brasil) no ano de
2007. Francisco costuma definir a si mesmo como “o Papa que veio do Sul”.
Papa Francisco, em Santa Cruz de la Sierra/Bolívia, encorajou os movimentos populares: "O destino está em vossas mãos" (Foto: AFP/Voz do Vaticano) |
Atuando como “locatário”, Bergoglio se sentiu em melhores
condições de dizer e afirmar o que já havia sustentado, num tom mais doutrinal,
em suas duas encíclicas Evangelii gaudium de 2013 e Laudato si de 2015. Ainda que
os conceitos sejam similares são poucos os que acessam os documentos pontifícios.
Outra coisa é dizer o mesmo em linguagem menos complexa diante de centenas de
milhares de pessoas e em meio dum banho de fervor popular. Também porque se faz
mais difícil ocultar tais definições por parte dos que, a partir da política ou
dos meios de comunicação, dizem venerar o Papa mas fazem o impossível cada dia
mais para desconhecer suas denúncias diante das injustiças crescentes da
sociedade que “exclui” e “descarta”.
Fenômeno de silenciamento que ocorre tanto por fora
como por dentro da Igreja. Muitos dos dirigentes políticos e sociais que se
“entusiasmaram” há pouco mais de dois anos com a eleição de Bergoglio como Papa
hoje admitem estar “desconcertados” quando não “decepcionados”. Esperavam um
Bergoglio “opositor” que de Roma “colocaria na roda” Cristina Fernández e o governo
criticando suas decisões políticas e econômicas. Como não aconteceu preferiram falar
da “utilização do Papa” por parte do governo. Algo similar ocorreu no Equador e
na Bolívia. A oposição esperava diatribes de Bergoglio contra Correa e
Francisco agradeceu ao presidente equatoriano “sua consonância com meu
pensamento”. E lhe devolveu a gentileza “com meus melhores desejos para que possa
lograr o que quer para o bem de seu povo”. Diante de Evo, que não tem uma boa
relação com a Igreja Católica local, Bergoglio reconheceu que “a Bolívia está
dando passos importantes para incluir amplos setores na vida econômica, social e
política do país” e “conta com uma Constituição que reconhece os direitos dos
indivíduos, das minorias, do meio ambiente, e com umas instituições sensíveis a
estas realidades”.
E mais além dos países visitados, ampliou sua referência
para assinalar que nestes últimos anos, “os governos da região envidaram esforços
para fazer respeitar sua soberania, a de cada país, a do conjunto regional, que
tão lindamente, como nossos pais de antanho, chamam a Pátria Grande”. As palavras
são eloquentes... mesmo para aqueles que estão decididos a não entender.
Porém como entre os últimos, por distraídos ou por incomodados,
também estão parte dos católicos e dos próprios bispos, o Papa disse em outro
momento que “a Igreja não pode nem deve estar alheia a este processo (de mudança)
no anúncio do Evangelho”.
Mudança das estruturas
No discurso de maior conteúdo político, escrito do
próprio punho e lido para evitar qualquer imprecisão, Bergoglio começou dizendo
ante os movimentos sociais em Santa Cruz que “comecemos reconhecendo que necessitamos
uma mudança”. E para evitar a manipulação do termo se apressou a assinalar: “Quero
esclarecer, para que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de
todos os latino-americanos e, em geral, também de toda a humanidade. Problemas
que têm uma matriz global e que hoje nenhum Estado pode resolver por si mesmo”.
O Papa se dá um banho de multidões a caminho da igreja de Caacupé, no segundo dia de sua visita ao Paraguai (Foto: Télam/Página/12) |
E seguiu esgrimindo argumentos que bem poderiam
estar na plataforma de muitos partidos de esquerda da região. “Insisto, digamos
sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança das estruturas.
Este sistema já não se aguenta, não o aguentam os camponeses, não o aguentam os
trabalhadores, não o aguentam as comunidades, não o aguentam os povos... E
tampouco o aguenta a Terra, a irmã mãe terra, como dizia São Francisco”. Essa
mudança, disse Bergoglio, tem que atender a nossa realidade mais próxima (“o
pagamento pequeno”) mas tem que ser uma mudança que também “toque o mundo inteiro
porque hoje a interdependência planetária requer respostas globais aos
problemas locais”. E agregou que “quando o capital se converte em ídolo e dirige
as opções dos seres humanos, quando a avidez pelo dinheiro tutela todo o
sistema sócio-econômico, arruina a sociedade, condena o homem, o converte em
escravo, destrói a fraternidade interhumana, coloca povo contra povo e, como
vemos, inclusive coloca em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra”. Falando
na catedral de La Paz, já havia sentenciado que “se a política se deixa dominar
pela especulação financeira ou a economia se guia unicamente pelo paradigma
tecnocrático e utilitarista da máxima produção, não poderão nem sequer compreender,
e menos ainda resolver, os grandes problemas que afetam a humanidade”.
Não só foram pronunciamentos teóricos. Bergoglio fixou
também rumos. “A primeira tarefa é por a economia a serviço dos povos. Os seres
humanos e a natureza não devem estar a serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma
economia de exclusão e iniquidade onde o dinheiro reina ao invés de servir. Essa
economia mata. Essa economia exclui. Essa economia destrói a mãe terra.”
E continuou. “A segunda tarefa é unir nossos povos
no caminho da paz e da justiça. Os povos do mundo querem ser artífices de seu
próprio destino. Querem transitar em paz sua marcha para a justiça. Não querem
tutelagens nem ingerências onde o mais forte subordina o mais fraco. (...) Nenhum
poder de fato ou constituído tem o direito de privar os países pobres do pleno
exercício de sua soberania e, quando o fazem, vemos novas formas de
colonialismo que afetam seriamente as possibilidades de paz e de justiça”. Por isso
exortou: “Digamos NÃO, então, às velhas e novas formas de colonialismo. Digamos
SIM ao encontro entre povos e culturas. Felizes os que trabalham pela paz”.
E para fechar, a “terceira tarefa, talvez a mais
importante que devemos assumir hoje, é defender a mãe terra. A casa comum de
todos nós está sendo saqueada, devastada, vilipendiada impunemente”.
Por isso “é imprescindível que, junto à reivindicação
de seus legítimos direitos, os povos e movimentos sociais construam uma
alternativa humana à globalização excludente” porque “não fazê-lo é um pecado
grave”.
Em meio a todos esses pronunciamentos houve espaço
para criticar “a concentração monopólica dos meios de comunicação social”, para
dizer que “o destino universal dos bens não é um adorno discursivo da doutrina
social da Igreja” porque “é uma realidade anterior à propriedade privada”, para
reconhecer que “se cometeram muitos e graves pecados contra os povos originários
da América em nome de Deus” e pedir “humildemente perdão, não só pelas ofensas
da própria Igreja mas também pelos crimes contra os povos originários durante a
chamada conquista da América”, para recordar na Bolívia o jesuíta Luis Espinal,
assassinado em 1980 pela ditadura de García Meza e para reconhecer, no Paraguai,
as Mães da Praça de Maio. Tampouco perdeu a oportunidade para afirmar que “a Igreja,
seus filhos e filhas, são uma parte da identidade dos povos na América Latina.
Identidade que, tanto aqui como em outros países, alguns poderes se empenham em
apagar, talvez porque nossa fé é revolucionária, porque nossa fé desafia a
tirania do ídolo dinheiro”.
Tradução: Jadson Oliveira
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