Astro da seleção de futebol do Chile, Carlos Caszely, o popular El Chino, se negou a apertar a mão do ditador Augusto Pinochet, numa cerimônia oficial (Foto: www.futrio.net) |
E pouco depois o jogador se
encontra cara a cara com o ditador, na despedida para a Copa de 1974 na
Alemanha. Então ele põe as mãos para as costas, enquanto Pinochet se aproximava
a cumprimentar um a um. Ele foi o único a rejeitar o ditador.
Por Urariano Mota – de Recife, do site Direto da Redação – reproduzido do jornal digital Correio do Brasil, de 06/07/2014
Entre as
imagens que nos vêm a partir do 11 de setembro de 1973, do dia em que houve o
golpe militar contra Salvador Allende, entre tantas imagens vivas, uma poderia
ser, com razão, do presidente Allende resistindo de capacete em ultimo recurso,
com alguns fiéis militantes às portas do palácio La Moneda. Essa imagem fala de
um socialista democrata, que pela força das urnas julgava ter o poder, que é
destruído ao fim, derrotado com a eloquência maior de bombas e crimes.
Outra
imagem poderia ser também a que correu mundo, dos livros sendo queimados por
soldados do exército nas ruas do Chile. Em um país de grandes poetas e tradição
humanista, essa foto escapou do paradoxo, porque ela se fez coerente com o
assassinato do poeta Pablo Neruda pela ditadura. E depois, essa imagem dos
livros no fogo é tão simples e pornográfica, ao mesmo tempo de tamanho
didatismo sobre a ideologia fascista no seu carbono Pinochet, que um comentário
passaria pelo já visto, ao lembrar e repetir ações de Hitler a Franco, todos
ótimos queimadores de escritores, livros e inteligência.
Então
falo rápido sobre uma imagem e personagem que marcam também. Não são muito
divulgados no Brasil um gesto, a pessoa e o valor de Carlos Caszely. Ele foi um
craque do futebol chileno. A wikipédia informa que Carlos Caszely é o jogador
mais popular e querido da história do Colo-Colo e do Chile. Até hoje é chamado
de El Chino, El Rey del Metro Cuadrado, ou de El Gerente. Mas o seu maior
feito é este: astro da seleção de futebol do Chile, em cerimônia oficial dentro
do palácio, no vigor de mortes e fuzilamentos de opositores, Carlos Caszely se
negou a apertar a mão do ditador Augusto Pinochet.
Ou como
ele próprio fala desse momento raro e belo, anos depois: “Eu ouvi passos. Foi
pavoroso. De repente as portas se abriram. Apareceu uma figura vestindo uma
capa, de óculos escuros e quepe. Tinha uma cara amarga, suja, dura. Ele foi
cumprimentar cada um dos jogadores qualificados para a Copa. Quando ele se
aproximou, eu botei minhas mãos atrás das costas. Ele estendeu sua mão, mas
recusei a apertar. Como ser humano aquela era minha obrigação. Tinha todo um
povo sofrendo nas minhas costas”. Mas que coisa.
As razões
do gesto, desse heroísmo, são anteriores. Não foi um impulso louco. Antes, o
jogador havia sido ligado ao ex-presidente Salvador Allende, socialista como o
presidente morto. Depois do golpe, Caszely se transferiu para o futebol
espanhol. E o que faz a canalha do regime no Chile? Perto da Copa de 1974, os
militares sequestram, prendem e torturam a mãe do jogador. Supõe-se que isso
era uma tentativa de calar Caszely e obrigá-lo a jogar pela seleção chilena.
Entre os perseguidos da ditadura, ele era o principal jogador do futebol chileno,
estrela do Colo-Colo e da seleção. Ele achou o ato de tortura na mãe tão
estúpido, que declarou recentemente:
“Ainda
hoje não está claro por que fizeram aquilo. Eles a prenderam e torturaram
selvagemente, e até hoje não sabemos de que ela era acusada. Recordo um país
triste, calado, silencioso, sem risos. Uma nação que entrava nas trevas. Eu
sabia o que viria de cima. Eu tinha medo. Não por mim, mas por meus amigos e
por minha família. Eu sabia que estavam em perigo por minhas ideias”. Então sua
mãe é presa, torturada e solta, sem qualquer acusação. E pouco depois o jogador
se encontra cara a cara com o ditador, na despedida para a Copa de 1974 na
Alemanha. Então ele põe as mãos para as costas, enquanto Pinochet se aproximava
a cumprimentar um a um. Ele foi o único a rejeitar o ditador.
Enquanto
escrevo, ao lembrar esse ato, sinto um cheiro de perfume, daqueles
inesquecíveis, cujo cheiro e composição química vêm apenas da lembrança que
cerca um gesto. Naquele maldito e mágico ano de 1973, quando o mundo conhecido
vinha abaixo, no momento exato em que grandes eram as esperanças, houve esse
gesto de Caszely tão pouco ou nada divulgado. Soube faz pouco tempo. Mas que
coragem, podíamos dizer. E aqui, se espaço houvesse, deveríamos discutir o
quanto estão errados os que julgam ser a coragem um atributo de valentões, de
homens que zombam do perigo. Não é. A coragem é a fidelidade ao sentimento de
honra, dever ou amor. Por isso dizemos: que afeto e grandeza em ser fiel ao
mais íntimo sentimos naqueles braços para trás de Caszely, enquanto avançava
contra ele o ditador. Com certeza, o jogador tremia, mas não podia ainda assim
ceder à mão de Pinochet no cumprimento.
Não sei,
mas esse me parece o maior gol de placa da história.
Urariano
Mota, escritor
e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela
ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de
traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O
filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do
Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do
ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos
jornais Movimento e Opinião.
Direto da
Redação é
editado pelo jornalista Rui Martins.
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