DITADURA MILITAR NO BRASIL: AULA MAGISTRAL DE TORTURAS



Fac-símile do informe sobre tortura do cônsul no Rio (Foto: Página/12)
Desclassificados documentos dos Estados Unidos sobre a ditadura brasileira: Biden os entregou a Dilma para serem incorporados à Comissão Nacional da Verdade. Relatos crus e detalhados.

Por Santiago O’Donnell, no jornal argentino Página/12, edição de 06/07/2014

O governo dos Estados Unidos conhecia em detalhes como, onde e de que maneira os militares da ditadura brasileira torturavam sistematicamente seus opositores políticos. Segundo uma série de 43 documentos recentemente desclassificados que o vice-presidente estadunidense Joe Biden entregou à presidenta brasileira Dilma Rousseff há duas semanas, durante sua visita à inauguração do Mundial de Futebol, Washington também sabia que numerosos detidos pela ditadura brasileira eram assassinados em execuções extrajudiciais e que nos anos 60 e 70 a cúpula militar pelo menos tolerava a ação dos esquadrões da morte.
Segundo os documentos entregues por Biden, a atitude do governo de Richard Nixon ante a informação que recebia era entre tíbia e permissiva, para não dizer cúmplice. 

Reservadamente, Washington fez saber aos militares brasileiros que não aprovava estes métodos que “prejudicam a imagem do Brasil”. Ao mesmo tempo a Casa Branca cuidou de não denunciar nem criticar publicamente a ditadura, da qual reconhecia o “êxito” na “luta contra o terrorismo”.

Os documentos foram desclassificados pelos Arquivos de Segurança Nacional (ASN), uma organização não governamental com base em Washington, e publicados ontem na página web da Comissão Nacional da Verdade (http://www.cnv.gov.br/index.php/outrosdestaques/498documentos).

A entrega dos documentos por parte de Biden faz parte duma estratégia de aproximação do governo de Barack Obama com o Brasil, após o estrago sofrido pelas relações bilaterais no ano passado, a partir das revelações do ex-espião Edward Snowden sobre como a agência de inteligência estadunidense NSA espionava Rousseff e a empresa petrolífera Petrobras.

“Espero que ao adotar passos para enfrentar nosso passado possamos encontrar a maneira de enfocar nosso imenso futuro”, Biden disse a Rousseff durante a cerimônia de entrega dos documentos no Palácio do Planalto, em Brasília. “Sou otimista de que o governo de Obama entregará à Comissão da Verdade informes ainda mais detalhados da repressão que permanecem ocultos nos arquivos secretos da CIA e da Agência de Inteligência do Departamento de Defesa,” agregou Peter Kornbluh, diretor do Projeto Brasil dos ASN.

Em um dos documentos desclassificados para a visita de Biden, o cônsul geral estadunidense no Rio de Janeiro informou ao Departamento de Estado que os militares brasileiros empregavam dois métodos de tortura diferentes. Por um lado, a tortura “moderna”, a que produz “uma dor insuportável” mas não deixa marcas no corpo, que se usava com estudantes que não teriam participação direta na luta armada e eventualmente seriam liberados. Por outro lado, a tortura “tradicional”, para os suspeitos de pertencer à guerrilha, os quais depois seriam assassinados em execuções extra-judiciais dissimuladas como fugas ou como “enfrentamentos armados”.

Ao longo de sete páginas escritas à máquina, o informe datado de 16 de abril de 1973 detalha com dolorosa precisão distintos métodos de tortura física e psicológica empregados pelos militares brasileiros.

“Por sua precisão e quase ausência de borrões se trata de um dos informes sobre tortura mais detalhados sobre técnicas de tortura como jamais se tenha desclassificado nos Estados Unidos”, disse Kornbluh a Página/12. O informe começa assim:

SUMÁRIO: as detenções de supostos subversivos por parte de agentes do Primeiro Exército cresceram dramaticamente nas últimas semanas. Em sua maioria estudantes universitários, os detidos têm sido submetidos a um intenso programa psicológico de exigências designado para extrair informação sem deixar marcas visíveis ou duradouras nos corpos. Se diz que aqueles suspeitos de serem duros terroristas são submetidos a métodos mais antigos de violência física que às vezes podem causar a morte. A explicação mais provável deste pico de detenções é que o eficiente acompanhamento policial da informação extraída após as detenções de princípios do ano levou a um número maior de subversivos para serem detidos. Outra explicação menos lógica, porém mais difundida, vincula as detenções com a sucessão presidencial. A reação pública a estas detenções tem sido moderada e calma, por enquanto, em parte porque muitos acreditam que uma campanha aberta para denunciar e criticar as detenções só faria pior a situação dos presos e provocaria mais detenções.

Segundo o documento, para os estudantes as torturas começavam no momento mesmo em que os detidos eram sequestrados à ponta de pistola por policiais civis em veículos sem chapa. Logo que os subiam ao carro, os encapuçavam e os obrigavam a deitar no piso do assento traseiro. Ao chegar à dependência policial o desnudavam e o deixavam várias horas numa cela fria e escura, com alto-falantes embutidos que emitiam gritos, sirenes e outros sons a altos decibéis. Depois vinha a rotina policial bom-policial mau e depois, se o prisioneiro não confessava, a tortura continuava:

Neste ponto, se o indivíduo não confessa e se se acredita que possui informação valiosa, ele é submetido a tormentos físicos e psicológicos cada vez mais dolorosos até que confessa. Ele é colocado nu em um quarto pequeno e escuro com um piso de metal pelo qual passa uma corrente elétrica. O indivíduo sente o choque, ainda que leve em intensidade, ao ser constante eventualmente se torna impossível de suportar. O indivíduo permanece várias horas neste quarto. Então pode ser transladado a outro dos vários quartos de “efeitos especiais”, onde diferentes instrumentos são usados para provocar medo e incômodos físicos. Às vezes se gera um cansaço mental e físico extremo, especialmente quando levam dois ou três dias de tratamento, já que durante esse período não lhe dão nem água nem comida.

Já os “terroristas duros” são torturados à morte com “os métodos antigos de violência física” e depois suas mortes são dissimuladas como enfrentamentos armados, assinala o despacho.

Muitas fontes assinalam que a “técnica do enfrentamento armado” está sendo usada de maneira crescente não só no Rio mas em todo Brasil para manipular as relações públicas com respeito às mortes de subversivos. Esta técnica havia sido adotada para os terroristas “duros” ou os subversivos radicais conhecidos, para evitar referências à sua morte-por-tortura na imprensa internacional.

Em 1º de fevereiro de 1971, o chanceler estadunidense William Rogers levou ao conhecimento do seu colega brasileiro Mário Gibson Barboza que o preocupava a “repressão e os duros métodos policiais” da ditadura, diz em outro informe diplomático, datado de 10 desse ano e mês.

Ainda que reconhecendo que era um assunto interno do Brasil, o secretário disse que causava preocupação em alguns círculos dos Estados Unidos e impactava de maneira adversa na imagem do Brasil. O secretário perguntou se o governo do Brasil podia fazer algo para melhorar esta situação. Gibson respondeu fazendo um convite para que o secretário visite o Brasil. Disse que da maneira como será recebido, dos discursos que se façam e dos atos de que participe poderá verificar a amizade que existe entre os dois países e a direção que o Brasil está tomando para solucionar este problema.

Mais além da “má imagem” internacional, outro telegrama, desta vez de 15 de julho de 1972, diz que a sociedade brasileira tolera o uso da tortura porque  atribui a esse método parte do “êxito” na “luta anti-subversiva”:

Ainda que haja amplas evidências de que os métodos de interrogatórios duros continuam sendo empregados a nível regional e local, em algumas áreas e por algumas unidades de maneira mais flagrante do que em outras, apesar da forte publicidade internacional adversa sobre o tema, e apesar da insatisfação que ditas medidas causam aos funcionários de primeiro escalão, é improvável que estes excessos sejam eliminados completamente enquanto este governo obcecado com a segurança acreditar que ainda exista uma ameaça terrorista significativa, cuja eliminação é sua prioridade número um. Para o bem ou para o mal, muitos brasileiros atribuem o êxito da campanha anti-terrorista à força das medidas aplicadas contra os terroristas.

Tradução: Jadson Oliveira

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