(Foto: Página/12) |
Aprovada,
numa votação apertada, pelo Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU,
iniciativa do Equador e África do Sul visando criar um grupo de trabalho para
elaborar “um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre as
empresas transnacionais e outras empresas”.
A proposta é estabelecer um marco
legal regulatório do comportamento das grandes corporações para impedir os
abusos ou as violações aos direitos humanos produzidos por suas atividades.
O preocupante é que dos nove
países da América Latina e Caribe que integram o CDH apenas dois acompanharam
com seu voto a iniciativa equatoriana: Cuba e Venezuela.
Assombra a deserção do Brasil,
apartando-se dos seus sócios do BRICS, que em sua totalidade votaram a favor da
proposta de um dos seus membros, a África do Sul.
Surpreende e muito consterna a
defecção da Argentina, que tem mais de um motivo para se preocupar com o tema.
Por Atilio A. Boron, cientista político argentino – no jornal Página/12, edição de ontem, dia 2
Na última quinta-feira, dia 26 de
junho, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, com sede em Genebra, submeteu
à votação uma iniciativa do Equador e África do Sul visando criar um grupo de
trabalho para elaborar “um instrumento internacional juridicamente vinculante
sobre as empresas transnacionais e outras empresas”. A proposta tinha como
objetivo avançar na elaboração dum marco legal regulatório do comportamento das
grandes corporações para impedir os abusos ou as violações aos direitos humanos
produzidos por suas atividades. Os considerandos do projeto se apoiavam nas
numerosas resoluções e normas das Nações Unidas relativas à proteção dos direitos
humanos e, indiretamente, numa proposta ventilada no seio dessa organização nos
anos 70.
Naquela oportunidade, a inércia ainda
latente dos processos de descolonização na Ásia e África e o surgimento de governos
progressistas e de esquerda na América Latina (o Chile de Allende, a Assembleia
Popular de Juan J. Torres na Bolívia, a Revolução Peruana de Velasco Alvarado e
a presidência de Luis Echeverría no México) fizeram possível a construção dum
amplo consenso no seio da ONU relativo à necessidade de submeter as empresas
transnacionais a regras de caráter universal, mais além das que puderam adotar
os Estados, em muitos casos demasiado débeis para resguardar a soberania
nacional. Daí que essa iniciativa dera origem a ásperas controvérsias,
agravadas pelos efeitos da chamada “crise do petróleo” de 1973, entre o bloco
de governos do capitalismo avançado – liderado pelos Estados Unidos e secundado
pelos países europeus e Japão – e o então Grupo dos 77 mais os países que naquela
época formavam o campo socialista. As táticas dilatórias dos primeiros, somadas
à esclerose burocrática dos organismos das Nações Unidas, precipitaram o
abrupto fim das negociações quando, com a eleição de Margaret Thatcher no Reino
Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, as burguesias metropolitanas passaram
à ofensiva, derrotaram os movimentos e forças políticas que desde Maio de 1968
acossavam a dominação do capital e eliminaram o projeto da agenda da ONU. Até agora.
A proposta discutida em Genebra
retomou, com as necessárias atualizações, algumas das preocupações que motivaram
aquele intenso debate dos anos 70. Só que neste caso, e no seio do CDH, a
iniciativa foi colocada em votação e aprovada, por escassa margem, mas aprovada
afinal. Votaram a favor da proposta do Equador e África do Sul um total de 20
países, com 14 votos contra e 13 abstenções. O preocupante no caso é que dos nove
países da América Latina e Caribe que integram o CDH apenas dois acompanharam
com seu voto a iniciativa equatoriana: Cuba e Venezuela. Desgraçadamente, a Argentina,
Brasil, Chile, Costa Rica, México e Peru se abstiveram. Já a Argélia, China,
Filipinas, Índia, Indonésia, Paquistão, Rússia e outros acompanharam a resolução,
ao passo que, previsivelmente, os Estados Unidos, os países europeus e o Japão
votaram pela negativa.
Como puderam os representantes desses
seis países da América Latina e do Caribe não se solidarizarem com uma
iniciativa do Equador e África do Sul, vítimas de brutais saques perpetrados pelas
transnacionais, como o prova, de maneira indiscutível, o desastre ambiental e
humano deixado pela Chevron na Amazônia equatoriana? Como podem ser tão ingênuos
(para não utilizar um termo mais ofensivo) para supor que a catástrofe produzida
nesse país é um desafortunado acidente que em nada reflete o modo de atuação
das grandes empresas, sobretudo nos países da periferia? Pode ser compreensível
que o Chile, Costa Rica, México e Peru – países seduzidos pelo canto da seréia e
das encenações da Aliança do Pacífico e sumamente inclinados a obedecer as ordens
da Casa Branca – tenham se dobrado ao mandato dos Estados Unidos e seus
aliados. Porém como explicar que também o tenham feito a Argentina e o Brasil?
Para compreender os alcances
desta iniciativa, nada melhor que reproduzir as declarações de Stephen Townley,
o representante dos Estados Unidos ante o CDH. Conhecido o resultado da votação,
disse que “os Estados Unidos não participarão nesta iniciativa de criar um
grupo de trabalho com os propósitos já estabelecidos e alentaremos outros
membros do CDH a atuar da mesma maneira.” “Alentaremos” quer dizer, neste caso,
“pressionaremos”, tal como seu país o fizera para impedir a criação da Corte
Penal Internacional. Como diria o mestre Noam Chomsky, eis aí uma aula prática
do que Washington entende por democracia! Se se vota o que os EUA querem, seu
resultado é aceito; em caso contrário, a “regra da maioria” se joga na lata de
lixo e o império declara seu repúdio à nova norma e promove a generalização de
sua desobediência. Em outras palavras: Washington se opõe, com antecedência, a qualquer
projeto de regulação das transnacionais e de proteção aos direitos humanos ainda
sem saber qual será o seu conteúdo e se finalmente se concretizará num tratado
ou convênio internacional. Previsivelmente, os peões europeus seguiram a voz do
amo e com impudica desonra se apressaram a declarar o mesmo, jogando por terra os
últimos restos da tradição democrática europeia.
Para concluir: uma vitória muito
importante que, apesar da deplorável deserção de alguns países da América Latina
e do Caribe, conta com o aval da constelação de atores que na vida prática estão
dando à luz uma nova ordem internacional crescentemente multipolar e na qual a
hegemonia dos Estados Unidos se encontra cada vez mais menoscabada. Assombra a
deserção do Brasil, apartando-se dos seus sócios do BRICS, que em sua totalidade
votaram a favor da proposta de um dos seus membros, a África do Sul, o que põe
em relevo, pela enésima vez, a clássica ambiguidade do Itamaraty: estamos no BRICS,
mas sub-repticiamente votamos com os Estados Unidos. Surpreende e muito
consterna a defecção da Argentina, que tem mais de um motivo para se preocupar
com o tema dada a crescente importância que tem a exploração dos recursos minerais
e “hidrocarburíferos” em sua atual estratégia econômica e a sintonia política
existente com o governo de Rafael Correa.
Confiemos em que desta vez, diferentemente
do ocorrido no século passado, uma nova versão do código de conduta das
transnacionais possa ser aprovado e levado à prática para por fim às suas
intermináveis tropelias. E que os países latino-americanos que se abstiveram na
semana passada – sobretudo a Argentina e
o Brasil – reconsiderem sua postura e colaborem ativamente nos trabalhos da
comissão que estará encarregada de preparar a nova normativa. Foi um
pequeno, porém significativo passo adiante. A melhor prova disso é a desaforada reação dos representantes do poder das
transnacionais, que não economizarão esforços para frustrar a concretização da
digna e corajosa iniciativa proposta pelo Equador e África do Sul.
Atilio A. Boron é diretor do
PLED, Centro Cultural de Cooperação Floreal Gorini.
Tradução: Jadson Oliveira
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