Partidos e movimentos sociais de esquerda, nas ruas centrais de Buenos Aires. defendem a moradia popular e protestam contra a repressão |
As passeatas (“marchas”) e protestos na área central da cidade se repetiram. Na quinta-feira, dia 9, por exemplo, uma dezena de partidos e movimentos de esquerda, com mais de mil militantes, se concentrou na Avenida de Maio, já chegando à Praça de Maio, em frente a uma das entradas do palácio do “prefeito” de Buenos Aires, Mauricio Macri (“prefeito” ou “alcaide”, com aspas, porque aqui seu cargo soa mais pomposo aos ouvidos brasileiros, ele é o chefe de Governo da capital).
Marcando lotes e armando precárias barracas: os sem-teto enquanto ocupavam o Parque Indoamericano, na Villa Soldati, zona sul da capital |
A repressão policial foi violenta no primeiro dia de ocupação e tentativa de desalojamento, causando as duas primeiras mortes |
Também o protesto contra a repressão ia para os dois governos, porque atuaram policiais de duas corporações: a Federal, que é uma das polícias subordinadas ao governo federal e atua no policiamento do dia-a-dia, como faz a Polícia Militar aí no Brasil (no caso brasileiro, subordinada ao governador do estado); e a Metropolitana, que é subordinada ao governo da capital. O “prefeito” de Buenos Aires também tem sua polícia. (Os governadores das províncias, ou estados, também têm as suas).
O “prefeito” portenho e o “discurso xenófobo e racista contra nossos irmãos”
Discursaram representantes das variadas agrupações políticas e as críticas e acusações foram bem mais pesadas contra Macri, que é um político de direita, opositor ao kirchnerismo. (Seu “partido” chama-se PRO, pensei que fosse uma sigla, não é. Perguntei: o que significa PRO? Me explicaram: “pro, em favor de algo”).
Cristian Cartillo, do PTS: "Não podemos aceitar que banalizem a repressão e os assassinatos" |
Cartillo criticou “o discurso xenófobo e racista contra os nossos irmãos paraguaios, bolivianos e peruanos, que são parte da classe trabalhadora argentina e latino-americana”. Entre os mortos dos ocupantes do parque (no Brasil eles seriam chamados de sem-teto), um é paraguaio e outro é boliviano. E o discurso a que ele se refere é de Macri, que ao se pronunciar sobre o assunto condenou a “imigração desordenada” a partir dos países vizinhos. O “prefeito” foi bombardeado por isso: até a “presidenta” se juntou ao coro das condenações, chegando até a pedir desculpas aos países “hermanos”.
Marcelo Ramal, do PO: "As terras da zona sul da capital estão nas mãos de duas corporações empresariais" |
Deputado e jornal de olho na tomada e matança nas favelas do Rio de Janeiro
O deputado federal Jorge Cardelli, do Projeto Sul (partido considerado de centro-esquerda, mas opositor ao governo de Cristina), ao discursar na mesma linha de condenação à repressão e defesa dos sem-teto, falou do risco da situação dos bairros pobres de Buenos Aires chegar à gravidade do que ocorre no Rio de Janeiro, Brasil, referindo-se à tomada de favelas cariocas, no final de novembro, por tropas da polícia e das Forças Armadas (o termo “villa”, que aqui se pronuncia “vija”, tem também o sentido de “favela”). Tal ilação relacionada com o Rio foi feita, na semana passada, também por um dos principais jornais diários daqui, o La Nación, de linha conservadora, em matéria com abertura na primeira página (não digo com chamada na capa, porque o La Nación adota aquela velha técnica de iniciar a matéria na primeira e continuar numa página interna).
Para registrar algumas outras organizações políticas, cujos cartazes, faixas e bandeiras eram mais visíveis: Partido Comunista Revolucionário (PCR) e sua Juventude Comunista Revolucionária (JCR), Corrente Classista Combativa (CCC), Bairros de Pé, Jovens de Pé, Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), Movimento dos Trabalhadores Desocupados (MTD - tradução literal, no Brasil o termo mais adequado seria Desempregados) e MST Nova Esquerda (Movimento Socialista dos Trabalhadores). (Um militante deste MST me disse que sua linha política e ideológica é a mesma do PSOL brasileiro).
(Todos esses partidos e entidades – trotskistas, anarquistas, piqueteiros - são enquadrados aqui como “de esquerda”. Já muitos outros, também do campo popular, que geralmente são afeitos ao jogo eleitoral e a maioria apoia o kirchnerismo, são considerados “de centro-esquerda”. São “carimbos” aceitos de forma bastante consensual, independentemente de se achar correta ou não a linha política, o que não acontece no Brasil. Para marcar a diferença: os brasileiros PT, PC do B e CUT, por exemplo, nunca seriam classificados aqui como “de esquerda”, mas sim como “de centro-esquerda”).
Ainda sobre as “protestas” de rua em apoio aos sem-teto, logo em seguida houve uma bem mais agressiva, no mesmo local, isto é, defronte do palácio do “prefeito”, na parte que fica na Avenida de Maio. Só que desta vez os manifestantes usaram pneus de carros como tochas e incendiaram o portão do palácio.
De como a ocupação dos sem-teto mexeu com a alta política nacional
Cristina Kirchner |
Condições do plano anunciado: serão atendidas com prioridade famílias que participavam da ocupação, sempre levando em conta as mais necessitadas; os que moram na Argentina no mínimo dois anos; e uma exigência chave: quem continuar ocupando terra pública ou privada não será beneficiado. O efeito foi imediato: no dia 15 o imenso parque, com 130 hectares, já estava totalmente desocupado. As cerca de seis mil pessoas, número a que já tinha chegado a população acampada, levantaram acampamento rapidamente. O número de ocupantes já batia nos mais de 13 mil, quando se incluíam os familiares dos acampados que estavam fora do parque, conforme o censo feito às pressas por funcionários do governo federal. Foi anunciado ainda que serão apuradas as responsabilidades pela repressão e mortes.
Mauricio Macri |
O que brilhou mesmo foram as disputas e especulações políticas e eleitorais. É que Mauricio Macri pretende ser candidato a presidente da República e as campanhas para a eleição de outubro/2011 estão a todo vapor, com três pré-candidatos já lançados oficialmente, número que não inclui nem Macri, nem Cristina. Entretanto, o “prefeito” está aparecendo em segundo lugar em pesquisas de opinião, na faixa dos 10% das intenções de voto. E a “presidenta”, depois da morte do marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, disparou para mais de 40%, percentual que já faz o peronismo kirchnerista sonhar com uma vitória no primeiro turno.
Ex-presidente Duhalde entra em cena com O Poderoso Chefão
Eduardo Duhalde |
Cristina, que já vinha denunciando “operações” políticas para desgastar seu governo, respondeu com um jogo de palavras que só faz sentido se se usa o espanhol: “No es que se desmadró, se apadrinó, que es diferente”, o que seria “não é que se desmandou (se perdeu o controle), se apadrinhou, o que é diferente”. O “apadrinó” é uma referência a El Padrino, título em espanhol da famosa trilogia de Francis Ford Coppola, que no Brasil é O Poderoso Chefão. A chave para se entender o contra-ataque da “presidenta”: Duhalde tem a má fama de ser mafioso.
Mais um ingrediente do caso Soldati: no mesmo dia 15, quarta-feira, Cristina dava posse à ministra da Segurança, novo ministério já anunciado no decorrer dos dias da ocupação, nascido do desmembramento do Ministério da Justiça. Quem assumiu o comando da Segurança foi Nilda Garré, que já estava no governo como ministra da Defesa e parece totalmente afinada com a prioridade aos Direitos Humanos, conforme a “presidenta” proclama em todas as oportunidades. No ato de posse, Garré apontou logo o rumo: “A repressão não serve para solucionar os conflitos sociais”.
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