OCUPAÇÃO POR MORADIA AGITA O MOVIMENTO POPULAR E A POLÍTICA ARGENTINA

Partidos e movimentos sociais de esquerda, nas ruas centrais de Buenos
Aires. defendem a moradia popular e protestam contra a repressão
De Buenos Aires (Argentina) - Foram oito dias – de 7 a 14 de dezembro - de agitação política e midiática, depois que algumas centenas de famílias, em busca de moradia, ocuparam o Parque Indoamericano, na Villa Soldati, área verde pública na zona sul, a mais pobre da capital argentina: repressão policial (restrita ao dia 7), seguida de ataques de gangues, conflitos entre ocupantes e moradores, três mortos, dezenas de feridos e detidos e organizações do movimento popular todos os dias nas ruas. E para completar a cena: disputa e troca de acusações nas altas esferas da política nacional, tendo como pano de fundo as campanhas para eleição presidencial.

As passeatas (“marchas”) e protestos na área central da cidade se repetiram. Na quinta-feira, dia 9, por exemplo, uma dezena de partidos e movimentos de esquerda, com mais de mil militantes, se concentrou na Avenida de Maio, já chegando à Praça de Maio, em frente a uma das entradas do palácio do “prefeito” de Buenos Aires, Mauricio Macri (“prefeito” ou “alcaide”, com aspas, porque aqui seu cargo soa mais pomposo aos ouvidos brasileiros, ele é o chefe de Governo da capital).

Marcando lotes e armando precárias barracas: os sem-teto enquanto
ocupavam o Parque Indoamericano, na Villa Soldati, zona sul da capital
A repressão policial foi violenta no primeiro dia de ocupação e tentativa
de desalojamento, causando as duas primeiras mortes
Os manifestantes protestavam contra a repressão aos ocupantes do parque. E cobravam a construção de moradias para os mais pobres, cobrança endereçada tanto ao governo da cidade (Macri), como ao governo “da Nação” (como eles se referem aqui), ou seja, à “presidenta” Cristina Kirchner.

Também o protesto contra a repressão ia para os dois governos, porque atuaram policiais de duas corporações: a Federal, que é uma das polícias subordinadas ao governo federal e atua no policiamento do dia-a-dia, como faz a Polícia Militar aí no Brasil (no caso brasileiro, subordinada ao governador do estado); e a Metropolitana, que é subordinada ao governo da capital. O “prefeito” de Buenos Aires também tem sua polícia. (Os governadores das províncias, ou estados, também têm as suas).

O “prefeito” portenho e o “discurso xenófobo e racista contra nossos irmãos”

Discursaram representantes das variadas agrupações políticas e as críticas e acusações foram bem mais pesadas contra Macri, que é um político de direita, opositor ao kirchnerismo. (Seu “partido” chama-se PRO, pensei que fosse uma sigla, não é. Perguntei: o que significa PRO? Me explicaram: “pro, em favor de algo”).

Cristian Cartillo, do PTS: "Não podemos aceitar que banalizem a repressão
e os assassinatos"
Falando pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), Cristian Cartillo, além de protestar pelas vítimas caídas na Villa Soldati, lembrou o assassinato de Mariano Ferreyra, militante do Partido Operário (“Obrero”, PO), ocorrido no dia 20 de outubro último (matéria neste blog de 22 de novembro), e as mortes na repressão aos indígenas na província de Formosa, norte do país, no último dia 23 (vídeo e texto neste blog postados no dia 14). Denunciou a violência da Polícia Federal e da Metropolitana: “Não podemos aceitar que banalizem a repressão e os assassinatos. Querem disciplinar a classe trabalhadora”, ressaltou, conclamando à luta “com piquetes e mobilização” contra “a Argentina dos grandes empresários, a Argentina dos exploradores”.

Cartillo criticou “o discurso xenófobo e racista contra os nossos irmãos paraguaios, bolivianos e peruanos, que são parte da classe trabalhadora argentina e latino-americana”. Entre os mortos dos ocupantes do parque (no Brasil eles seriam chamados de sem-teto), um é paraguaio e outro é boliviano. E o discurso a que ele se refere é de Macri, que ao se pronunciar sobre o assunto condenou a “imigração desordenada” a partir dos países vizinhos. O “prefeito” foi bombardeado por isso: até a “presidenta” se juntou ao coro das condenações, chegando até a pedir desculpas aos países “hermanos”.

Marcelo Ramal, do PO: "As terras da zona sul da capital
estão nas mãos de duas corporações empresariais"
Já o dirigente do PO, Marcelo Ramal, convocou a militância a lutar para garantir a ocupação da terra e criticou duramente a gestão de Macri, afirmando que ele tinha acabado com os programas de moradia popular e compactuava com a especulação imobiliária, em benefício de grupos empresariais. “Todos nós sabemos que as terras da capital federal, da zona sul da capital, estão nas mãos de duas corporações”, denunciou.

Deputado e jornal de olho na tomada e matança nas favelas do Rio de Janeiro

O deputado federal Jorge Cardelli, do Projeto Sul (partido considerado de centro-esquerda, mas opositor ao governo de Cristina), ao discursar na mesma linha de condenação à repressão e defesa dos sem-teto, falou do risco da situação dos bairros pobres de Buenos Aires chegar à gravidade do que ocorre no Rio de Janeiro, Brasil, referindo-se à tomada de favelas cariocas, no final de novembro, por tropas da polícia e das Forças Armadas (o termo “villa”, que aqui se pronuncia “vija”, tem também o sentido de “favela”). Tal ilação relacionada com o Rio foi feita, na semana passada, também por um dos principais jornais diários daqui, o La Nación, de linha conservadora, em matéria com abertura na primeira página (não digo com chamada na capa, porque o La Nación adota aquela velha técnica de iniciar a matéria na primeira e continuar numa página interna).

Para registrar algumas outras organizações políticas, cujos cartazes, faixas e bandeiras eram mais visíveis: Partido Comunista Revolucionário (PCR) e sua Juventude Comunista Revolucionária (JCR), Corrente Classista Combativa (CCC), Bairros de Pé, Jovens de Pé, Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), Movimento dos Trabalhadores Desocupados (MTD - tradução literal, no Brasil o termo mais adequado seria Desempregados) e MST Nova Esquerda (Movimento Socialista dos Trabalhadores). (Um militante deste MST me disse que sua linha política e ideológica é a mesma do PSOL brasileiro).

(Todos esses partidos e entidades – trotskistas, anarquistas, piqueteiros - são enquadrados aqui como “de esquerda”. Já muitos outros, também do campo popular, que geralmente são afeitos ao jogo eleitoral e a maioria apoia o kirchnerismo, são considerados “de centro-esquerda”. São “carimbos” aceitos de forma bastante consensual, independentemente de se achar correta ou não a linha política, o que não acontece no Brasil. Para marcar a diferença: os brasileiros PT, PC do B e CUT, por exemplo, nunca seriam classificados aqui como “de esquerda”, mas sim como “de centro-esquerda”).

Ainda sobre as “protestas” de rua em apoio aos sem-teto, logo em seguida houve uma bem mais agressiva, no mesmo local, isto é, defronte do palácio do “prefeito”, na parte que fica na Avenida de Maio. Só que desta vez os manifestantes usaram pneus de carros como tochas e incendiaram o portão do palácio.

De como a ocupação dos sem-teto mexeu com a alta política nacional

Cristina Kirchner
O caso Villa Soldati dominou a pauta política e as manchetes, com emissoras de TV – em especial a Crónica TV, do grupo Clarín, em guerra declarada contra os Kirchner – reprisando a todo momento as imagens dos conflitos. Ainda na quarta-feira, dia 15, foi o tema central dos noticiários, já que, na noite anterior, os governos federal e da cidade chegaram finalmente a um acordo, após muita polêmica, e anunciaram um plano conjunto de construção de casas populares, uma das reivindicações básicas do movimento popular. Foi a solução encontrada, sob pressão, não só para a desocupação do parque, mas também de olho em outras “invasões” que já começavam a pipocar pelos bairros pobres.

Condições do plano anunciado: serão atendidas com prioridade famílias que participavam da ocupação, sempre levando em conta as mais necessitadas; os que moram na Argentina no mínimo dois anos; e uma exigência chave: quem continuar ocupando terra pública ou privada não será beneficiado. O efeito foi imediato: no dia 15 o imenso parque, com 130 hectares, já estava totalmente desocupado. As cerca de seis mil pessoas, número a que já tinha chegado a população acampada, levantaram acampamento rapidamente. O número de ocupantes já batia nos mais de 13 mil, quando se incluíam os familiares dos acampados que estavam fora do parque, conforme o censo feito às pressas por funcionários do governo federal. Foi anunciado ainda que serão apuradas as responsabilidades pela repressão e mortes.


Mauricio Macri
Até se chegar ao acordo, no entanto, foram muitas e pesadas as acusações entre os dois governos, inclusive de que um e outro estariam patrocinando gangues violentas entre os moradores da área (a terceira morte ocorreu depois de cessada a repressão policial e as gangues passaram a agir. Foi apontada a presença de traficantes de terra e há suspeita de participação também de traficantes de droga, embora este último aspecto tenha ficado ofuscado).

O que brilhou mesmo foram as disputas e especulações políticas e eleitorais. É que Mauricio Macri pretende ser candidato a presidente da República e as campanhas para a eleição de outubro/2011 estão a todo vapor, com três pré-candidatos já lançados oficialmente, número que não inclui nem Macri, nem Cristina. Entretanto, o “prefeito” está aparecendo em segundo lugar em pesquisas de opinião, na faixa dos 10% das intenções de voto. E a “presidenta”, depois da morte do marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, disparou para mais de 40%, percentual que já faz o peronismo kirchnerista sonhar com uma vitória no primeiro turno.

Ex-presidente Duhalde entra em cena com O Poderoso Chefão


Eduardo Duhalde
A polêmica alcançou ainda mais um pretendente à Casa Rosada, o ex-presidente Eduardo Duhalde, também peronista, mas dissidente do kirchnerismo (ficou interinamente mais de um ano no cargo, 2002/2003, da rebelião popular de dezembro/2001 que derrubou o presidente Fernando de la Rúa até a posse de Néstor Kirchner). No decorrer do caso Soldati, Duhalde fez um chamado “à ordem”, dizendo que o país estava vivendo “um clima pré-anárquico”, dando a entender que o governo estava perdendo o controle da situação.

Cristina, que já vinha denunciando “operações” políticas para desgastar seu governo, respondeu com um jogo de palavras que só faz sentido se se usa o espanhol: “No es que se desmadró, se apadrinó, que es diferente”, o que seria “não é que se desmandou (se perdeu o controle), se apadrinhou, o que é diferente”. O “apadrinó” é uma referência a El Padrino, título em espanhol da famosa trilogia de Francis Ford Coppola, que no Brasil é O Poderoso Chefão. A chave para se entender o contra-ataque da “presidenta”: Duhalde tem a má fama de ser mafioso.

Mais um ingrediente do caso Soldati: no mesmo dia 15, quarta-feira, Cristina dava posse à ministra da Segurança, novo ministério já anunciado no decorrer dos dias da ocupação, nascido do desmembramento do Ministério da Justiça. Quem assumiu o comando da Segurança foi Nilda Garré, que já estava no governo como ministra da Defesa e parece totalmente afinada com a prioridade aos Direitos Humanos, conforme a “presidenta” proclama em todas as oportunidades. No ato de posse, Garré apontou logo o rumo: “A repressão não serve para solucionar os conflitos sociais”.

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