Hoje não há mais utopias do futuro que mobilize corações e mentes. Para o intelectual italiano Enzo Traverso, “movimentos sociais e partidos políticos de esquerda não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico e atuar como freios às novas direitas”.
De acordo com
Traverso, “os instrumentos historicamente construídos pela classe trabalhadora,
como sindicatos, associações comunitárias e partidos, deixaram de estar onde a
vida é vivida”.
Por Liszt Vieira (+) (Reproduzido
do Fórum 21 – Portal das Esquerdas)
A eleição para o Parlamento Europeu no domingo 9/6 mostrou, como
se esperava, o avanço da extrema direita, principalmente na França, com 32,4 %
dos votos, contra 15,2% do partido do presidente Macron e 14,3% do partido
socialista. Na Alemanha, com 16,5%, o partido de ultra direita Alternativa para
Alemanha tornou-se a segunda força política do país. Em termos gerais, a
direita deve ter 181 assentos no Parlamento Europeu, a extrema direita, 150
assentos, e a esquerda (Socialistas e Democratas), 135 assentos.
A grande maioria dos jovens votou na direita. Segundo declarações à BBC
News, “para acabar com o status quo”, “porque a esquerda fracassou”, “não
encontramos trabalho e a política de imigração é muito branda”, “a direita
radical canaliza sentimentos anti-establishment” etc.
Hoje não há mais utopias do futuro que mobilize corações e mentes. Para
o intelectual italiano Enzo Traverso, “movimentos sociais e partidos políticos
de esquerda não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico e
atuar como freios às novas direitas”. Ele afirma que “um espectro ronda o
mundo, e desta vez não é o comunismo, mas uma nova direita que avança na
Europa, nos EUA e América Latina, em contrapartida ao vazio de poder do sistema
de partidos tradicionais que perderam suas bases sociais e também seus
discursos identitários” (Las Nuevas Caras de la Derecha, editora Siglo
Veinteuno, 2021).
Segundo Traverso, uma parte da esquerda, incapaz de compreender as
mudanças na etapa histórica, segue apostando tudo no combate às desigualdades
econômicas, ignorando a importância que a luta cultural ganha em momentos como
esse. Por isso, no caso do Brasil, por exemplo, fica difícil compreender que,
apesar da melhora dos indicadores econômicos – com inflação sob controle,
aumento do PIB, diminuição do desemprego, aumento da renda dos mais pobres –
segue havendo um profundo mal-estar entre os mais pobres em relação à política
como um todo. De acordo com Traverso, “os instrumentos
historicamente construídos pela classe trabalhadora, como sindicatos,
associações comunitárias e partidos, deixaram de estar onde a vida é vivida”.
Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o
“reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”. Mas a
esquerda radical, segundo ele, nunca soube conciliar diferentes pautas
identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça,
gênero e religião. Na mesma linha, a filósofa norte-americana Nancy Frazer,
desde 2001, defendia a necessidade de articular redistribuição com
reconhecimento, a reivindicação econômica com a luta pelo reconhecimento das
identidades. Separar redistribuição do reconhecimento, assim como separar o
social do institucional, como querem alguns, é um grave equívoco. O
institucional, sem o social, vira uma burocracia estéril. O social, sem o
institucional, torna-se em geral uma ideologia impotente, sem condições de
promover transformações sociais.
No que diz respeito à eleição de governantes, há diversos fatores que
podem influenciar o eleitor na hora do voto. Um deles é, sem dúvida, a
identificação do eleitor com o candidato. Muitas vezes, eleitores votam segundo
suas identidades, como classe social, nível econômico, religião, orientação
sexual, etnia, gênero e até mesmo clube esportivo. Outro fator importante na
formação da opinião que influencia o voto é a ação da mídia tradicional e das
redes sociais. A desinformação e as fake news desempenham hoje um papel de
grande relevância na decisão do voto, com informações enganosas ou falsas.
Identidades sociais, políticas públicas, influência da mídia e estratégias de
campanha são elementos que pesam na decisão de votar, além, é claro, das
condições econômicas.
Assim, a tese tradicional de que o voto se explica primordialmente pela
economia não corresponde mais à realidade. A famosa frase “É a economia,
estúpido”, cunhada em 1992 por James Carville, então estrategista da campanha
presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush, perdeu seu reinado
exclusivo das últimas décadas. A situação atual dos EUA e também do Brasil é
esclarecedora a respeito.
É inegável a melhora da economia norte-americana. A taxa anual de
crescimento econômico durante o atual Governo Biden foi superada apenas em
quatro ocasiões nos últimos 24 anos. O desemprego está em 3,7%, nível
historicamente baixo. Ao longo dos últimos três anos foram criados 17.973.000
empregos, enquanto no primeiro triênio do governo Donald Trump criaram-se
7.994.000.
A maneira como Biden enfrentou a pandemia e seus efeitos econômicos
contribuiu para a tranquilidade nacional e a retomada da expansão do PIB.
Inspirado pelo New Deal de Franklin Roosevelt, mobilizou o governo como
incentivador de investimentos em infraestrutura, energia limpa e pesquisa
tecnológica, além dos estímulos à indústria. No plano internacional, Biden está
pagando alto preço pelo apoio militar ao genocídio dos palestinos cometido pelo
Governo de Israel. Mas, na política doméstica, a economia vai bem e antes mesmo
do massacre dos palestinos Biden já era mal avaliado pela maioria da opinião
pública.
Apesar dos avanços econômicos, Biden está atrás de Trump nas pesquisas
eleitorais. Embora processado na Justiça, Trump surge como favorito na eleição
americana de novembro próximo e tudo indica que vai ganhar a eleição, se não
for impedido pela Justiça de ser candidato, o que vai fortalecer o avanço da
extrema direita no mundo.
Algo parecido está ocorrendo com o governo Lula. Os avanços econômicos
são claros, mas não são percebidos por grande parte do eleitorado, intoxicado
com as fake news e com a propaganda diária nas redes sociais e mesmo na grande
imprensa. Inflação mais baixa, PIB mais alto, já cresceu 3,2% ante o mesmo
período do ano passado, segundo IBGE. O dólar se manteve em torno de 5 reais.
No que se refere às Reservas, Bolsonaro perdeu US$ 66 bi em 4 anos, e Lula
aumentou US$ 14 bi em 70 dias.
O nível de desemprego recuou ao menor nível desde 2015, segundo o
IBGE. A razão principal foi o crescimento do trabalho informal que paga
salários menores e contribui menos para um crescimento sustentável da economia.
Renda do trabalho dos brasileiros tem a maior alta desde o Plano Real. O
aumento chega a 11,7% em 2023 na esteira de maior gasto público. A inflação
prevista para este ano é de 3,8%, enquanto a taxa de juros Selic continua alta,
escandalosamente acima de 10%, por decisão de um Banco Central a serviço do
mercado financeiro.
O vilão parece ser o aumento no preço de alimentos que vêm subindo acima
da inflação desde outubro do ano passado. Agora, as enchentes no Rio Grande do
Sul e a seca no Centro-Oeste são dois fatores agravantes. Pesa também na
decisão do eleitor políticas de bem-estar social como saúde, educação e,
conforme a classe social, a questão da segurança pública.
Mais importante é o sentimento de abandono da população periférica que
todo ano vê suas casas inundadas pelas enchentes, com perdas quase total de
seus bens. Para essas pessoas, não há diferença importante entre os diversos
governos. Não estão preocupadas com a ABIN paralela e outras questões da super
estrutura, estão inteiramente dedicadas a buscar estratagemas de sobrevivência.
Para beneficiar essa população marginalizada, seria necessária uma política de
grande impacto como o New Deal, com forte investimento do Estado na economia,
como ocorre nos EUA com o atual Governo Biden que prega o neoliberalismo para
os outros países, sufocados com o austericídio fiscal que beneficia o mercado
financeiro.
Com a catástrofe climática no RS era de se esperar uma rejeição em massa
do Governador que cancelou e alterou 480 itens do Código Ambiental do RS e dos
Prefeitos, principalmente o Prefeito de Porto Alegre que desviou verba prevista
para a prevenção de enchentes e não fez manutenção do sistema de proteção
contra inundações, deixando sucatear as comportas, diques e muros de contenção.
Ambos são neoliberais e negacionistas notórios da crise climática. Ao que tudo
indica, porém, essa rejeição é bem menor do que se esperava. Nem está sendo
reconhecida, como merecia, a ação de apoio emergencial do Governo Federal ao
RS, inclusive com diversas visitas pessoais do presidente Lula ao Estado.
A decisão do atual Governo Lula de buscar com a direita um consenso pela
conciliação e distribuição de altos cargos no aparelho de Estado tem o objetivo
de contribuir para a governabilidade a curto prazo e facilitar a aprovação da
pauta do Governo no Congresso. Mas, a médio e longo prazo, isso pode ser
contraproducente, contribuindo ainda este ano para a vitória de candidatos de
direita nas próximas eleições municipais, que servirão de base de apoio para
uma eventual vitória da direita ou extrema direita na eleição presidencial de
2026. E, até agora, as nomeações de Ministros e altos funcionários indicados
pelo Centrão – eufemismo para a direita parlamentar – têm favorecido muito mais
a direita do que o Governo que já perdeu muitas votações no Congresso. E,
apesar dos avanços na área econômica, a popularidade do Governo e do Presidente
não tem aumentado.
Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o cientista
político Rudá Ricci declarou que “o governo Lula não enfrenta a direita e a
extrema direita, é um governo conservador”. Segundo ele, Lula teve uma vitória
eleitoral e derrota política pelas alianças que fez com a direita. Por outro
lado, num exemplo de apoio crítico, João Pedro Stedile, dirigente do MST, em
entrevista a Brasil de Fato, declarou que “o Governo não está fazendo nada na
reforma agrária, é uma vergonha. Desapropriação não avançou, o crédito para os
assentados não avançou, nem o Programa Nacional de Educação para a Reforma
Agrária”. Mas Stedile reforça a necessidade de defender o Governo de seus
inimigos: as multinacionais, o capital financeiro, o latifúndio predador e
parte do agronegócio.
Outra questão com peso ideológico é o problema da violência criminal e
da segurança, que leva muita gente a apoiar o discurso da extrema direita de
“atirar primeiro e perguntar depois”, “bandido bom é bandido morto”, tendo como
consequência a mortandade de inocentes nas favelas e nos bairros periféricos. E
de grande relevância é a questão ambiental que explodiu como catástrofe
anunciada no RS.
Hoje, a vida humana e animal está ameaçada pelas mudanças climáticas,
resultantes principalmente da emissão de gases de efeito estufa e, no Brasil,
do desmatamento provocado pelo agronegócio predatório, apoiado pelos
negacionistas e neoliberais, em geral com o apoio da mídia. Seria de se esperar
que a catástrofe no RS abalasse as opiniões tradicionais e, na esquerda,
contribuísse para uma crítica profunda não apenas ao neoliberalismo e ao
tradicional desenvolvimentismo que ignora a sustentabilidade, mas também – e
sobretudo – ao negacionismo climático e seus dogmas, ostensivos na direita e às
vezes, embora ocultos, presentes na esquerda. Mas isso parece não estar
ocorrendo como demonstra a decisão do Governo Lula, com o apoio ou silêncio da
esquerda, de explorar petróleo na Margem Equatorial do Amazonas, na contramão
da transição energética.
E a declaração do Presidente Lula no dia do meio ambiente – afirmando
que “a questão ambiental não é mais para ativistas e bicho grilo, é um chamado
à responsabilidade humana” – foi uma confissão oculta do tradicional
preconceito e rejeição da esquerda à questão ambiental e seus defensores na
ciência, nos movimentos sociais e na Universidade. Os negacionistas, de direita
e de esquerda, não querem lembrar que chamaram os ambientalistas de ecochatos,
bicho grilo, meio ambiente é coisa de viado, no Brasil o problema é social, não
é ambiental, meio ambiente é modismo importado da Europa, e por aí vai. Uma
atitude mais correta seria fazer autocrítica e reconhecer que os ambientalistas
e os cientistas climáticos sempre estiveram com a razão.
Ao lado do fator macroeconômico, cujos avanços não são percebidos pela
população marginalizada, temos um importante segmento da população que se
informa apenas pelas redes sociais e se identifica com valores conservadores
como o machismo, homofobia, racismo etc. São contra a interrupção voluntária da
gravidez, casamento de pessoas do mesmo sexo etc. Estamos aqui diante de uma
questão doutrinária, de influência religiosa. São contra o aborto em nome do
direito à vida, mas, depois do nascimento, não se importam se as crianças vão
morrer de fome ou baleadas pelos tiros da Polícia nas favelas. Casamento é um
contrato civil entre duas pessoas adultas, não importa a religião, o sexo, a
orientação política ou o time de futebol preferido.
Um instrumento político importante de doutrinação é o discurso “contra o
sistema”. Os jovens, com menos possibilidades de emprego no mercado de
trabalho, são muito sensíveis ao ataque ao sistema para “mudar tudo o que está
aí”. Não se diz como, não há projetos políticos, econômicos, culturais ou de
qualquer outra natureza. Mudar pode melhorar ou piorar, com vemos agora na
Argentina, onde Milei recebeu expressiva votação dos jovens, e já havíamos
visto antes no Brasil durante o governo passado. É bom não esquecer que Lula
agora é o Sistema, faz acordos por cima e muitas vezes concede vantagens a
setores já privilegiados, tudo em nome da governabilidade. São exemplos disso
as concessões feitas ao mercado, aos militares e à direita no Congresso.
Por outro lado, o Papa João Paulo II, ao destruir a Teologia da
Libertação, com o apoio do Cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, abriu
caminho para o movimento evangélico pentecostal e neopentecostal, de origem
norte-americana. A Teologia da Prosperidade é a bandeira doutrinária dos
evangélicos neopentecostais, recentemente “enriquecida” com a Teologia do
Domínio. Os fiéis devem destruir seus adversários, vistos como inimigos de
Deus, O avanço recente do chamado “sionismo cristão” está ligado a essa nova
Teologia do Domínio.
Diante disso, só um trabalho de base a longo prazo pode reverter essa
crença e esse apoio dos fiéis e de boa parte da classe média aos políticos de
extrema direita, com o quais se identificam principalmente pelos valores
conservadores, e não por propostas econômicas ou projetos políticos.
Possivelmente, esses valores conservadores e o ódio passaram a influenciar mais
o comportamento do eleitor do que a economia.
Considerando que o último ano do mandato presidencial é absorvido pela
campanha eleitoral, o Governo Lula já percorreu metade do caminho. Se não
houver mudanças drásticas na composição e atuação do Governo, corremos o risco
de perder agora a eleição na maioria dos municípios e depois a eleição
presidencial em 2026. Afinal, a extrema direita avança em todo o mundo. Na
América Latina, servem de anteparos principalmente o Brasil, a Colômbia e o
México. Mas, com a possível vitória de Trump, candidato favorito nas eleições
presidenciais nos EUA, se não for impedido pela Justiça, a possibilidade de uma
vitória da extrema direita no Brasil, com o apoio da direita, inclusive daquela
instalada no Governo, é uma hipótese que não pode ser descartada e exige ser
enfrentada.
(+) Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho
Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa
Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de
Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim
Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela
PUC-RIO.
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