Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (Foto:Internet) |
"As esquerdas partidárias deixaram de viver onde vivem os seus eleitores, deixaram de conviver e de conversar com eles, exceto quando os visitam para lhes pedir o voto. Quem hoje convive e conversa com os grupos sociais mais excluídos são muitas vezes as igrejas evangélicas neopentecostais quando não é o crime organizado”, diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos.
Por Boaventura de Sousa Santos - sociólogo português
10 de fevereiro de 2022, 11:02 h Atualizado em 10 de fevereiro de 2022, 11:13
Reproduzido a partir do site Brasil 247
As eleições gerais do passado dia 30 de janeiro em Portugal tiveram
resultados surpreendentes. O Partido Socialista (PS) ganhou as eleições com
maioria absoluta. Portugal será, a partir de agora, o único país europeu
com um governo de maioria absoluta de um só partido de esquerda. Os
dois partidos à esquerda do PS tiveram os piores resultados de sempre. O
Partido Comunista (PCP), que tinha doze deputados no parlamento, passa a ter
metade; e o Bloco de Esquerda (BE), que tinha 19 deputados, passa a ter
cinco. O BE passa de terceira força política para quinta e o PCP, de
quarta para sexta. As posições destes partidos passaram a ser ocupadas por
forças de ultradireita, uma de inspiração fascista (Chega), agora terceira
força política, da família da extrema-direita europeia e mundial; e outra
de recorte hiper-neoliberal, darwinismo social puro e duro, ou seja, a
sobrevivência do mais forte (Iniciativa Liberal), agora quarta força
política. Os resultados eleitorais mostram que a esquerda à esquerda do PS
perdeu a oportunidade histórica que granjeou depois de 2015 ao construir uma
solução de governo de esquerda que ficou conhecida por geringonça (PS,
BE, PCP), uma solução que travou a austeridade imposta pela solução
neoliberal da crise financeira de 2008 e lançou o país numa recuperação econômica
e social modesta mas consistente. Esta solução começou a precarizar-se em 2020
e colapsou em finais de 2021 com a rejeição do orçamento apresentado pelo
governo. Foi isso que levou às eleições antecipadas de 30 de janeiro. A vitória
esmagadora do PS depois de seis anos de governação e dois anos de pandemia é memorável
e merece reflexão. Neste texto, proponho-me refletir sobre o outro fato
importante destas eleições: a queda abrupta dos dois partidos de esquerda à
esquerda do PS. Não pretendo aqui analisar a queda em si mesma; pretendo antes
mostrar o abismo que nela se manifesta entre a esquerda que o BE e o PCP
representam e a esquerda que, em meu entender, tem condições para
prosperar nas próximas décadas. A diferença entre o que existe e o que proponho
é tal que estamos perante a necessidade
de reinventar as esquerdas. Por agora não me refiro ao conteúdo
programático. Refiro-me sobretudo às formas
de organização. Apresento a minha proposta em dez teses.
1. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos
inseguros que não se sentem mobilizados pelas formas dominantes de politização,
sejam elas partidos ou movimentos da sociedade civil organizada.
A esmagadora maioria dos cidadãos não está filiada em partidos, não
participa em movimentos sociais nem sai à rua para se manifestar, mas uma boa
parte dela sente-se excluída, abandonada e sem esperança que a democracia
realize as suas expectativas. A pandemia veio agravar a insegurança existencial.
As forças de extrema-direita foram as primeiras a identificar aí a sua
oportunidade para prosperarem. São exímios empreendedores do medo e da
raiva.
Depois de séculos de colonialismo (racismo, xenofobia, roubo de terra e
de recursos naturais) e de hétero-patriarcado (sexismo, violência de gênero,
feminicídio, homofobia, transfobia) e de mais de quarenta anos de
capitalismo neoliberal (concentração escandalosa da riqueza,
sobreexploração do trabalho, erosão dos direitos sociais e econômicos e destruição
da natureza), as revoltas ou explosões sociais, quando ocorrem, tendem a
colher de surpresa os partidos e as organizações da sociedade civil
(associações e movimentos sociais). São muitas vezes movimentos
espontâneos, presenças coletivas nas praças públicas.
2. Não há democracia sem partidos, mas há
partidos sem democracia.
Uma das antinomias da democracia liberal representativa reside em ela
assentar cada vez mais nos partidos como forma exclusiva de agência política,
ao mesmo tempo que os partidos são internamente cada vez
menos democráticos. Os partidos vivem e reproduzem-se no interior de
instituições que tendem a isolar-se da turbulência e da complexidade das
dinâmicas sociais. O déficit democrático dos partidos traduz-se na incapacidade
para captar atempadamente e interpretar corretamente os anseios, as
inseguranças, as aspirações de cidadãos e cidadãs cada vez mais
armadilhados na ideologia dominante da autonomia e da liberdade, sem
terem condições materiais para serem efetivamente autônomos ou se
sentirem efetivamente livres. Sem ninguém os escravizar, sentem-se
condenados a auto-escravizar-se. Enquanto empreendedores, colaboradores,
trabalhadores autônomos, sentem-se na situação paradoxal de terem direito
a não ter direitos. Esta dissonância é particularmente acentuada entre os
jovens e as classes sociais socialmente empobrecidas e vulneráveis, aquelas
para cuja defesa se criaram os partidos de esquerda. Por exemplo,
as ideologias dominantes nos partidos de esquerda tendem a ver nos jovens
apenas trabalhadores precários. Eles são isso, mas são muito mais do que isso,
são cidadãos e cidadãs preocupados com a sua sexualidade, com o racismo, com as
dificuldades de relacionamento num mundo pandêmico e de comunicação virtual,
com a perda de amizades intensas, com a exigência de altas qualificações acadêmicas
destinadas ao desemprego ou ao emprego lixo, com o medo que a crise ecológica
lhes roube mais facilmente o futuro que o capitalismo. A distância entre todas
estas vivências e carências e os códigos de formulação e de gestão política dos
partidos é cada vez mais preocupante.
3. Os partidos do futuro serão
partidos-movimento.
Se é verdade que os partidos tradicionais esgotaram o seu tempo
histórico, isso é particularmente verdade no caso dos partidos de esquerda. A
solução reside em transformar os partidos em entidades mais intensamente democráticas.
Os partidos do futuro têm de combinar a democracia representativa com a
democracia participativa no modo como se organizam, como definem os seus
programas, como escolhem os seus líderes, como tomam decisões políticas
importantes, como prestam contas e afirmam a transparência. A participação
cidadã nos partidos não se pode esgotar no exercício do direito de voto de
quatro em quatro anos. Deve exercer-se no decurso do mandato dos eleitos, e não
apenas quando o mandato termina. Esta participação não se pode reduzir a
receber informações regulares. Devem plasmar-se na constituição de círculos
de cidadania militante e simpatizante, organizados por local de residência ou
por tipo de ocupação, com capacidade deliberativa e não apenas consultiva. Esta
vigilância e co-criação política é particularmente decisiva no caso dos
partidos de esquerda por duas razões principais. As classes e os grupos sociais
que as esquerdas se propõem representar e cujos interesses dizem defender vivem
em condições sociais e universos culturais diferentes dos das lideranças
políticas e têm menos tempo e menos proximidade social para se manifestarem ou para
se fazerem entender. A política de proximidade é a chave da política do futuro.
Essa proximidade não pode ser mero artefato virtual da sociedade de informação
porque os corpos vivos têm densidades e emoções que fogem à lógica binária da
comunicação virtual. Além do mais, a comunicação virtual não entende os
silêncios e as ausências, embora uns e outras sejam fundamentais para entender
o sofrimento dos que mais sofrem e as injustiças a que estão sujeitos os mais
injustiçados.
A segunda razão prende-se com a tradição do marxismo-leninismo que por
vezes ao centralismo democrático nos partidos vindos da tradição comunista.
Esta tradição teve o seu mérito no seu tempo, mas está hoje ultrapassada pelas
condições de vida e comunicação contemporâneas. Mantê-la nos dias de
hoje, ainda que de forma matizada, significa por vezes cair na tentação do
espírito de seita (sectarismo), na busca de unanimidades através do
policiamento antidemocrático de opiniões divergentes para que não vinguem
e, finalmente, na oscilação brusca entre unanimidade e silenciamento, suspensão
de direitos, demonização na praça pública. Este tipo de gestão das
diferenças é cada vez mais incompatível com a visão que os cidadãos têm da
convivência e da deliberação democráticas.
4. Os partidos-movimento de esquerda não
precisam de ser inventados a partir do zero; devem conhecer e valorizar as suas
origens.
As esquerdas nasceram na convivência com as classes e grupos sociais excluídos.
Ajudaram a minorar a exclusão e o silenciamento, não apenas dando voz às suas
reivindicações, mas também promovendo a sua autoestima, através da educação e
da cultura populares, dos grupos teatrais, das atividades de convívio e de
lazer. As esquerdas têm de voltar às suas origens, ao convívio de proximidade
com os grupos sociais excluídos, discriminados, empobrecidos. Paradoxalmente,
estes grupos são os que sofrem mais com a ideologia dominante e os que
mais facilmente se sentem seduzidos por ela, expostos como estão à indústria do entretenimento massivo e às
redes sociais reconfortantes. As esquerdas partidárias deixaram de viver
onde vivem os seus eleitores, deixaram de conviver e de conversar com eles, exceto quando os visitam para lhes pedir o
voto. Quem hoje convive e conversa
com os grupos sociais mais excluídos são muitas vezes as igrejas evangélicas
neopentecostais quando não é o crime organizado. O ativismo militante de
esquerda parece limitar-se a participar em reuniões do partido para fazer
(quase sempre ouvir quem faz) uma análise da conjuntura. Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de
falar com as vozes silenciadas e excluídas em termos que estas entendam. Para
mudar isso, as esquerdas devem reinventar-se.
5. Não há democracia, há democratização.
A responsabilidade das esquerdas reside em que elas servem hoje à democracia
mais genuinamente que quaisquer outras. A democracia liberal representativa
sempre teve o medo das maiorias sociais. Basta lembrar que a democracia
representativa esteve na sua origem limitada aos proprietários, uma
pequena minoria de cidadãos. Mas nos últimos sessenta anos passou por períodos
em que, com maior verossimilhança, foi o regime dos governos das maiorias para
benefícios das maiorias. Hoje em dia, a democracia liberal está cada vez mais
capturada por poderosos interesses econômicos. À medida que isso ocorre e é
mais conhecido, vai germinando a ideia de que a democracia está a ser
desfigurada e é hoje muitas vezes um regime de governos de minorias para
benefício das minorias. Em muitos países, as forças políticas de direita
dependem cada vez mais de interesses econômicos poderosos. Para poder servi-los,
não podem servir à democracia; apenas se servem dela. As forças políticas de
esquerda estão, por esta razão, em melhor posição para servir à democracia e defendê-la
dos antidemocratas. Mas, para isso, têm de romper com a lógica de organização
interna típica dos partidos de direita.
As esquerdas são as mais bem posicionadas para entender que a democracia
não se pode limitar ao espaço-tempo da cidadania. As sociedades politicamente
democráticas são frequentemente sociedades em que as maiorias não têm condições
de viver democraticamente por estarem expostas a quotidianos de autoritarismo
que tenho designado como fascismo social. A luta democrática tem de existir
também no espaço da família, da comunidade, da produção, das relações sociais,
das relações com a natureza e das relações internacionais. Cada espaço-tempo
convoca um tipo específico de democracia. Nisto consiste a democracia de alta intensidade. Comparada com ela, a democracia liberal representativa é uma
democracia de baixa intensidade.
6. Os partidos-movimento devem lutar contra o
fundamentalismo da exclusividade da representação.
Os partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti-sociedade
civil organizada (associações e movimentos sociais). Consideram que têm o
monopólio da representação política e que esse monopólio é legítimo,
precisamente porque as organizações sociais não são quantitativamente
representativas. Por isso, os únicos meios de se articular com elas são a
cooptação ou a infiltração. É assim que os partidos só reconhecem “os seus
movimentos”, as “suas associações”, sejam elas sindicatos ou ordens
profissionais. Este fundamentalismo da exclusividade da representação e o que
dele decorre levam a deslegitimar as organizações da sociedade civil, a sujeitá-las
a lógicas partidárias com prejuízo para os interesses reais dos seus
associados.
A luta contra o fundamentalismo tem ainda uma outra dimensão.
Os partidos privilegiam a ação institucional, a mobilização das
instituições, tais como, o parlamento, os tribunais e a administração pública.
Pelo contrário, as organizações da sociedade civil e sobretudo os movimentos
sociais, embora utilizem também a ação institucional, recorrem muitas vezes à
ação direta, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins,
à divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). O
fundamentalismo da exclusividade da representação tende a desvalorizar estas
importantes formas de mobilização social e a fomentar a tentação de as
instrumentalizar. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais (é-se
socialista, comunista, conservador, democrata cristão). Pelo contrário, as
organizações e movimentos sociais concentram-se em lealdades temáticas mais
específicas: a habitação, a imigração, a violência policial, o racismo e o sexismo,
a diversidade cultural, a diferença sexual, a ecologia, o território, o regionalismo,
a economia popular, etc. Trabalham com linguagens e conceitos distintos dos que
são usados pelos partidos. Essa diversidade enriquece a convivência
democrática.
As organizações e movimentos sociais sabem que as formas de opressão
tanto vêm do Estado como das relações sociais (às vezes familiares) e
econômicas. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável de luta
contra atores privados: os patrões e as empresas. É por esta razão que o
neoliberalismo lhes tem feito um ataque cerrado. A sociedade civil organizada
em associações, movimentos sociais e sindicatos está hoje marcada por uma
experiência muito negativa: os partidos
de esquerda descumprem frequentemente as suas promessas eleitorais quando
chegam ao poder. Esse descumprimento leva a prazo à deslegitimação dos
partidos. Se a legitimação democrática não for recuperada pelos
partidos-movimento democráticos, os partidos antidemocráticos e de vocação
fascizante encontram aí um terreno fértil para prosperarem. Apresentam-se, em
geral, como o antissistema, a nova/velha extrema-direita.
7. A revolução da informação eletrônica e as
redes sociais não constituem, em si, um instrumento incondicionalmente
favorável ao desenvolvimento da democracia participativa.
Pelo contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião pública
que o processo democrático pode ser fatalmente desfigurado (o mundo das fake
news e do discurso do ódio). O exercício da democracia participativa
necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e discussões face a
face. A tradição das células partidárias, dos círculos de cidadãos, dos
círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de ser reinventada.
Não há democracia participativa sem interação de proximidade. A pandemia tornou
mais difícil a política de proximidade, mas ela deve ser retomada logo que
possível.
8. Os partidos-movimento de esquerda estão
abertos a juntar forças com outros partidos de esquerda com base no princípio
das pluralidades despolarizadas e das teorias da transição.
Tradicionalmente, as forças políticas de esquerda foram vítimas
de faccionismo e de oportunismo. Em ambos os casos, esses desvios deveram-se
à distância que criaram com as suas bases sociais. No caso das forças de
tradição comunista e anarquista, o faccionismo foi o desvio mais frequente, decorrente
quase sempre da ansiedade identitária e do purismo ideológico.
Fracionaram-se com frequência e transformaram os companheiros de ontem
nos inimigos de hoje. No caso das forças de tradição socialista, o desvio mais
frequente foi o do oportunismo, o ecletismo ideológico que tornou mais fácil
coligar-se com forças de direita do que com outras forças de esquerda. Tanto o
faccionismo como o oportunismo contribuem para desarmar as forças de esquerda e
frustrar as suas bases sociais. Isto é particularmente preocupante num contexto
de época de crescimento de forças de extrema-direita, apostadas em usar a
democracia para chegar ao poder, mas prontas para a descartar à medida que isso
for possível.
Contra esta dupla tradição devem contrapor-se dois princípios. O
primeiro é o princípio das pluralidades despolarizadas. Consiste em distinguir
entre o que separa e o que une as organizações políticas e promover as
articulações entre estas com base no que as une, sem perder a identidade do que
as separa. O que as separa apenas fica em suspenso por razões pragmáticas. As
diferenças só se despolarizam quando as concessões são recíprocas, quando os
processos e resultados da negociação são transparentes e as bases sociais das
organizações participantes os consideram benéficos depois de devida e
adequadamente consultadas. Esta é a primeira chave para acordos entre os
partidos de esquerda.
A segunda chave consiste na consideração dos tempos e dos ritmos das
políticas defendidas. O socialismo não pode ficar na gaveta para sempre, mas
também não pode atingir-se amanhã. Há que pensar em períodos de transição, nos
quais as reformas devem ser medidas pela capacidade de consolidar avanços sem
abrir as portas para retrocessos abruptos. O neoliberalismo tornou tão evidente
e grave a transferência de riqueza dos pobres e das classes médias para os
ricos e para as velhas e novas elites que as forças de direita
tradicionais vivem hoje mais das oportunidades que as esquerdas lhes dão pelos
erros que cometem do que por mérito próprio.
9. A cultura e a educação populares são uma das chaves para sustentar a
democracia e travar o avanço dos autoritarismos.
Os meios de luta mais eficazes contra o velho/novo fascismo,
o autoritarismo e o obscurantismo são a cultura e a educação. A cultura é
a prática da diversidade e da imaginação democráticas por excelência. A
educação é essencial para promover a difusão da convivência democrática e do
interconhecimento entre diferenças políticas, sociais e culturais. As
novas formas de educação política popular incluem rodas de conversa,
círculos de cidadania, universidades populares, teatro do oprimido, poesia
slam, cultura hip-hop, com vista a criar ecologias de saberes que potenciem a
participação política em que se deve plasmar a democracia participativa do
futuro: orçamentos participativos, consultas populares, conselhos sociais ou
de gestão de políticas públicas, sobretudo nas áreas da saúde e da
educação.
A história do país, de tudo o que há nela de luminoso e de tenebroso, é
uma dimensão essencial da cultura e da educação. O passado foi um passado de
lutas onde houve vencedores e houve vencidos. Por razões óbvias, as classes
dominantes preferem a história dos vencedores contada pelos vencedores (seus
antecessores). As forças políticas de esquerda devem, ao contrário, promover a
divulgação da história dos vencidos contada pelos vencidos (os antecessores dos
grupos sociais que se propõem defender). Histórias plurais são as mais
eficazes para lutar contra a falsa contingência do presente e o carácter
instantâneo e sem raízes da contemporaneidade monolítica. Uma sociedade que não
conhece o seu passado está condenada a ter só o futuro dos outros.
10. Vivemos um período de lutas defensivas
A ideologia de que não há alternativa ao capitalismo – o qual é, de
fato, uma tríade: capitalismo, colonialismo (racismo) e hétero-patriarcado (sexismo)
– acabou por ser interiorizada por muito do pensamento de esquerda. O
neoliberalismo conseguiu combinar o fim supostamente tranquilo da história com
a ideia da crise permanente (por exemplo, a crise financeira, a crise ecológica
e, mais recentemente, a crise sanitária). Por esta razão, vivemos hoje sob
o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas exigências porque quem está
com fome ou é vítima de violência policial ou de gênero não pode esperar pelo
socialismo para comer ou ser libertado.
Mas não se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão
das lutas de médio prazo. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto prazo
em urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há alternativas de
vida e que, se não queremos entrar num período de pandemia intermitente, temos
de atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os
nossos modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno
pandêmico.
Num momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando
não estão já no poder, uma das lutas mais importantes é a luta pela democracia.
A democracia liberal representativa é de baixa intensidade, porque aceita ser
uma ilha relativamente democrática num arquipélago de despotismos sociais, econômicos
e culturais. Por isso, não se sabe defender eficazmente das forças
antidemocráticas. A democracia liberal
representativa é um essencial ponto de partida, mas não pode ser o ponto de
chegada. O ponto de chegada é uma profunda articulação entre a democracia liberal,
representativa, e a democracia participativa, deliberativa. Neste momento de
lutas defensivas, é particularmente importante defender a democracia liberal,
representativa, para neutralizar os fascistas e para, a partir dela,
radicalizar a democratização da sociedade e da política. As forças
políticas de esquerda devem ter isto particularmente presente porque sabem que
serão elas os primeiros alvos e as primeiras vítimas da violência
fascista.
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