“NÃO MATAMOS GENTE. MATAMOS JUDEUS, CIGANOS E INIMIGOS DA PÁTRIA E DO FÜHRER”


(Foto da Internet: usada na edição deste blog)
“Lá em Auschwitz, os que matavam judeus eram tão racionais, tão brilhantes, tão inteligentes, professor Müller, como aqueles que, dentre eles o senhor, lecionavam nas universidades”.



“Dizíamos a eles que teriam de tomar uma chuveirada. Nós os colocávamos em galpões. Em vez de água, o que saía dos chuveiros era gás. Morriam aos milhares”.



Por José Pablo Feinmann (filósofo argentino) – trecho do livro ‘A sombra de Heidegger’, editora Planeta, pág. 153/4/5/6 (título e destaques acima são da edição deste blog).



(...)



Não matamos gente. Matamos judeus, ciganos e inimigos da pátria e do Führer. Dez mil por dia? Esse número lhe parece impraticável ou aterrador?



Por ora, impraticável.



Não é assim. Veja, nossa glória reside em nossa eficiência. Não fomos monstros irracionais nem desumanos. Monstros assim não teriam conseguido planejar as coisas com tão extraordinária  precisão. Lá em Auschwitz, os que matavam judeus eram tão racionais, tão brilhantes, tão inteligentes, professor Müller, como aqueles que, dentre eles o senhor, lecionavam nas universidades. Apenas a inteligência pode levar a cabo semelhante façanha. Tínhamos uma ordem: matar. Matar milhões de pessoas. Como fazê-lo? Nossa racionalidade de alemães, nossa tradição de povo instruído, nossa esmerada inteligência, professor, encontrou uma saída para tanto. Outro povo não o teria conseguido. Não por convenções morais, mas pela formação intelectual deficiente. Serei breve: dizíamos a eles que teriam de tomar uma chuveirada. Nós os colocávamos em galpões. Em vez de água, o que saía dos chuveiros era gás. Morriam aos milhares. O problema era outro. O problema que obrigou nossa razão, nossa inteligência, a elevar-se acima do irrealizável foi outro: como eliminar os cadáveres? Também resolvemos isso. Devo contar?



Posso imaginar.



Não, não pode. O senhor não consegue imaginar. O senhor foi um homem de ideias. As ideias requerem a ação. E a ação requer homens como eu. O senhor e eu fomos partes de uma mesma causa. No entanto, a parte mais árdua, a que mais requereu nosso patriotismo, coube a mim e aos meus. Por isso esperamos por Eichmann. O melhor de todos nós. Quanto aos números que talvez o atormentem, professor, evite-os. Vez por outra, lembre-se do que eu lhe disse: não eram gente.

(Foto da Internet)


Os chuveiros.



A foto que tenho diante de mim mostra um homem ao ser levado para lá. Não o arrastam. Não o empurram. Vai, sozinho e nu, para a morte. Vê-se seu membro viril. Um ponto branco no púbis excessivo, superdimensionado pela má qualidade da foto, que acentua o preto e o cinza – sobretudo, o preto. É um homem tão magro, tão descarnado, que, em rigor, já não o é. É uma coisa. Werner Rolfe se equivocava. Não matavam judeus, ciganos nem inimigos do Reich. Era impossível decifrar a condição do homem da foto. Seus olhos eram enormes. Fato que induzia a erro. A achar que ele olhava com terror. Não, já não olhava. A dilatação daqueles olhos – produzida pela fome e pelo sofrimento – era uma forma de cegueira. As maçãs do rosto também eram enormes, brotando do rosto esquelético. Lembro-me (com brutalidade, subitamente) de uma frase de Gabriel Marcel: “A cada dia nos parecemos mais com o cadáver que seremos”. Esse homem, esse que agora caminha para o chuveiro de gás, era já o cadáver que seria.



Rolfe não se equivocava: não matavam pessoas, matavam coisas. Matavam mortos. Antes, muito antes, de metê-los sob os chuveiros de gás, eles os haviam esmigalhado como pessoas. Eles os tinham submetido à tarefa essencial do campo: extirpar a identidade. Matar a subjetividade. Matá-los como sujeitos.



Esse homem, com seus olhos enormes, me olha. Porque viu a câmera. Viu o carrasco que se dedicou a registrar essa nova façanha de nosso país. E o olhou. Sei que não viu nada. Sei que já nada via.



Agora, porém, vê a mim.



Olha-me.



Não tenho nem uma só resposta para dar-lhe.



Sei que não somos os únicos monstros deste mundo. Sei que os bolcheviques matam milhões em seus campos gelados. Sei que os americanos se saíram como carniceiros em Hiroshima e Nagasaki com tanta eficácia quanto nós em nossos campos. Sei que Mussolini, no final, nos entregou judeus aos milhares. Sei que os franceses foram dóceis ao ponto da cumplicidade. Sei que Churchill foi um carrasco em Dresden. Sei, portanto, que ninguém pode julgar-nos. O deserto cresce, apropria-se da terra, e nada terá sentido.



Não tenho a quem pedir perdão.



Mas preciso fazê-lo.



Peço perdão a ele. A essa ruína humana que caminha para a câmara de gás. A esse morto que vai morrer. A esse ser de olhos imensos que nada vêem. A esse pobre cego. A essa vítima eu peço perdão. Sei que algumas coisas que fiz ou que não fiz, que disse ou que não disse, que soube mas preferi ignorar, sei que certas ideias que apoiei covardemente, sem questioná-las, sem medir as consequências, sem perguntar a que serviam, levaram-te até aí, onde estás agora, só, nu, a poucos passos de uma morte premeditada com feroz racionalidade, só, sem identidade possível, pois não sei nem é possível saber quem és, se és um judeu, um polonês, um cigano, um inimigo do Reich ou um cão magro, sujo, maltratado e comido pelas pulgas da peste. Nu entre homens de uniforme. Aí estás. A eles o uniforme dá identidade, poder. Tua nudez é anônima. Tua identidade não existe. Tu és lixo e morrerás em meio ao lixo. A ti peço perdão. Diante de ti sou culpado. Sou o que fizeram de ti. Sou o lixo que és. Ou sou pior. Porque sou um cúmplice, que se achava inocente, que preferia não saber, ignorar, o que faziam de ti em meu nome, em nosso nome, em nome da Alemanha. Portanto morrerei contigo, como lixo e no lixo, sem redenção.



(...)

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