“Como saúde e educação são bens que todos precisam
e valorizam, o capital financeiro vai sucatear a prestação pública de serviços
de qualidade precisamente nessas áreas a fim de vender saúde e educação pelos
olhos da cara”.
Por Jessé
Souza (sociólogo) – do livro ‘A
classe média no espelho’, editora Estação Brasil, páginas 158/59/60 (título
e destaque acima são da edição deste blog)
(...)
A
sociedade não é inteligível a olho nu. Sua compreensão é complexa e desafiadora
para qualquer um, sobretudo para os leigos que nunca a estudaram, embora
imaginem, apenas porque dela participam, que entendem seus mecanismos
complexos. Sem um projeto alternativo claro e de longo prazo, fica-se refém das
conjunturas e dos acordos de conveniência, como ocorreu com o PT em diversas
ocasiões.
Nesse
contexto, a questão real não é por que houve o golpe, e sim por que ele não
aconteceu antes. Foi essa fragilidade simbólica que facilitou o golpe de 2016.
O moralismo postiço da Rede Globo e da Lava Jato campeou praticamente sem
oposição discursiva e articulada que pudesse denunciar a trama no seu
nascedouro. Como foi dito, no próprio Ministério da Justiça da presidenta
depois deposta montou-se o arcabouço legal que funcionaria como cortina de
fumaça para o ataque à democracia.
Boa parte
da classe média entrou no jogo de cartas marcadas da corrupção seletiva. A alta
classe média, alguns poucos milhões de brasileiros nos grandes centros,
sobretudo na comparativamente mais rica cidade de São Paulo, entrou na trama,
em parte por motivos racionais, ou seja, economicamente compreensíveis. Afinal,
como se viu, ela ganha com o rentismo e a nova configuração flexível do mundo
social e participa do saque econômico ao lado da elite de proprietários. Nesse
estrato, a imbricação com a elite e seus interesses é real.
A
situação da massa da classe média é distinta, pois ela tem muito a perder com o
ataque ao intervencionismo estatal como mitigador de um mercado financeiro que
rapina a economia popular e destrói a frágil rede de serviços públicos em
construção. Cerca de 40% da desigualdade social deve-se ao acesso diferencial a
serviços públicos – e isto nada tem a ver com a renda familiar. Para a massa da
classe média, a investida do capitalismo financeiro contra o SUS, a fim de
vender planos de saúde de bancos e fundos de investimento, tem consequências
importantes. O serviço é pior e o custo é maior.
O mesmo
acontece com o ataque às universidades e ao sistema de ciência e tecnologia. A
massa da classe média precisa da universidade pública de qualidade para que
seus filhos tenham condições de competir no mercado de trabalho. A alta classe
média pode mandar e, na verdade, já manda seus filhos para universidades
estrangeiras.
Isso sem
contar o aumento da violência e da desigualdade, a degradação das condições de
vida social em todas as dimensões e o empobrecimento e o desemprego estrutural
que passam a atingir em peso também a massa da classe média. Como saúde e
educação são bens que todos precisam e valorizam, o capital financeiro vai
sucatear a prestação pública de serviços de qualidade precisamente nessas áreas
a fim de vender saúde e educação pelos olhos da cara. A Emenda Constitucional
95 (a “PEC do teto dos gastos públicos”, de dezembro/2016, depois do golpe),
por exemplo, veio para realizar este serviço sujo.
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