A opressão precisa ser moralizada, difundindo-se a
ilusão de que o interesse do dominado é levado em conta e, mais importante,
convencendo-o de que a própria dominação é para o seu bem.
A opinião explícita que temos sobre nós mesmos
tende a ser a mera justificativa da vida que levamos ou a mera repetição de
chavões da mídia e da indústria cultural.
Por Jessé
Souza (sociólogo) – do livro ‘A
classe média no espelho’, editora Estação Brasil, págs. 58/59/60 (título e
destaques acima são da edição deste blog)
(...)
Os donos
do dinheiro e do poder não podem simplesmente dizer ao restante da sociedade:
“Nosso intuito é deixar todos vocês, otários, sem propriedade e sem poder,
apenas com a roupa do corpo, trabalhando nas condições mais favoráveis para
mim”. Não é assim que acontece. Caso contrário, teríamos revolta e revolução. Não
há dominação de poucos sobre muitos sem o recurso à mentira e ao engano. Em
consequência, a opressão precisa ser moralizada, difundindo-se a ilusão de que
o interesse do dominado é levado em conta e, mais importante, convencendo-o de
que a própria dominação é para o seu bem.
Tão
importante quanto notar devidamente a dimensão simbólica da sociedade é
compreender a interconexão entre moralidade e poder, ou entre aprendizado
efetivo e mera justificação de privilégios injustos. A infantilização e o
bloqueio da capacidade de reflexão se dão seja pela construção de mitos
nacionais vira-latas, contos de fadas para adultos, seja pela instalação de uma
oposição simplista entre o bem e o mal. O resultado é a difusão da crença de
que existem pessoas do bem, de um lado, e pessoas do mal, de outro.
Esse é o
mundo das novelas, dos romances best-seller recheados de clichês, dos
telejornais da Rede Globo, dos programas de rádio patrocinados por bancos, etc.
Na realidade, não existem pessoas que incorporam unicamente a virtude absoluta
ou o mal absoluto. Algumas podem ser muito boas e outras muito más. Porém mesmo
esses casos limítrofes são muito raros. A grande parcela da humanidade, cerca
de 99% das pessoas, é uma mescla de ambas as coisas no comportamento concreto e
cotidiano, e cada um de nós faz o que pode para separar o joio do trigo.
O bem e o
mal, portanto, estão “dentro de nós”, assim como estão “dentro de nós” as
fontes morais, historicamente construídas, que definem o que é a virtude e o
que é o vício. Como vimos, na cultura ocidental o bem e a virtude são definidos
tanto como controle das emoções pelo espírito quanto pela expressão verdadeira
dessas mesmas emoções. Isso implica que ser virtuoso, segundo nossos próprios
termos, é uma aventura contraditória e conflituosa, seja na dimensão
existencial, seja na dimensão pública da vida política.
Usando a
linguagem popular, viver a vida de todo dia “não é fácil para ninguém”. Essa
dificuldade é, ao mesmo tempo, existencial e política. Somos dilacerados por
demandas valorativas conflitantes. Além disso, somo coagidos pela antiga
demanda moral que caracteriza a tradição judaico-cristã ocidental: devemos,
afinal, escolher seguir os valores morais ou optar pelo interesse egoísta de
ocasião?
A
primeira dificuldade é cognitiva e se refere ao desafio de compreender as
fontes morais que nos comandam. Como esses valores sociais comuns são
inarticulados e inconscientes, imaginamos, infantilmente, que criamos
subjetivamente os valores que nos servem de guia. As consequências disso, como
veremos, são de difícil comprovação empírica. Apesar de tais valores serem
invisíveis – ou melhor, apesar de serem tornados invisíveis à nossa reflexão
consciente pelos podres poderes que nos dominam -, seus efeitos no
comportamento prático são facilmente observáveis e comprováveis.
Basta
observar o mais importante, ou seja, o comportamento prático, e não as opiniões
explícitas que as pessoas mantêm sobre si mesmas. A opinião explícita que temos
sobre nós mesmos tende a ser a mera justificativa da vida que levamos ou a mera
repetição de chavões da mídia e da indústria cultural. Como amamos justificar o
que somos, exatamente por conta disso costumamos odiar a verdade.
(...)
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