“Na falta de um projeto articulado e de uma TV
pública com conteúdo plural, a presidenta (Dilma) viu-se forçada a deixar que a
Rede Globo, braço midiático do próprio rentismo, explicasse a luta política à
população nos seus próprios termos”.
Por Jessé Souza (sociólogo) – do livro A
classe média no espelho (páginas 157/158), editora Estação Brasil (título e
destaque acima são da edição deste blog)
O fato de o Partido dos
Trabalhadores ter desenvolvido, a partir do carisma do ex-presidente Lula, o
“lulismo”, na expressão marcante de André Singer (no livro Os sentidos do
lulismo, da Companhia das Letras, 2012), como política de amparo aos mais
pobres e marginalizados deve-se mais ao tino e à astúcia política do grande
líder popular do que a um projeto partidário articulado e consciente. A
lealdade conquistada nesses setores, antes os grotões mais conservadores da
política brasileira, foi o ganho mais duradouro de uma política que, apesar de
virtuosa, não soube mobilizar nem se proteger.
Apesar das conquistas
históricas na luta contra a desigualdade abissal, a falta de um projeto
alternativo deliberado explica boa parte da colonização do partido popular pelo
discurso elitista do moralismo de fachada. Explica também boa parte do seu
comportamento errático e hesitante em questões fundamentais, como, por exemplo,
em relação ao aparato jurídico-policial do Estado.
Muitos, até pessoas
inteligentes e argutas politicamente, não entendem claramente este ponto. A
maioria acha que basta ter um projeto econômico alternativo e mais inclusivo
que, espontânea ou magicamente, as pessoas vão compreender seu significado e
seu benefício. Não se percebe a importância crucial de elaborar uma narrativa,
ou seja, um projeto articulado alternativo ao elitista. Sem tal projeto
convincente de longo prazo, não se sabe em que sentido, por exemplo, reformar o
Estado, o Judiciário ou a política.
A inexistência desse
projeto alternativo impossibilita um ataque ao núcleo do rentismo e da
expropriação elitista, como corajosamente procurou fazer a ex-presidente Dilma.
Na falta de um projeto articulado e de uma TV pública com conteúdo plural, a
presidenta viu-se forçada a deixar que a Rede Globo, braço midiático do próprio
rentismo, explicasse a luta política à população nos seus próprios termos.
Sem um projeto político
de longo prazo, é possível promover a ascensão social de setores sociais
inteiros, como parcelas dos pobres e da massa da classe média, mas se perde a
narrativa da paternidade deste esforço para igrejas e outros atores sociais nas
cidades do Centro-Sul. Sem um projeto articulado se faz, também, last but
not least, o serviço para o inimigo, como fez o Ministério da Justiça da
ex-presidenta Dilma, urdindo o aparato legal para as leis de exceção utilizadas
mais tarde pelos inimigos para golpear a própria presidenta e a democracia.
Ainda assim, tem muita
gente boa que não vê a importância de se articular, ponto a ponto, tal projeto
alternativo. Obviamente, essa incapacidade mostra até que ponto somos dominados
pela hegemonia dessa visão de mundo liberal-chique, que se torna, com o golpe,
uma visão de mundo crescentemente “neoliberal-tosca”.
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