Por Franciel Cruz – jornalista, autor de Ingresia, livro de crônicas (*)
Nada ou tudo que se diga sobre o covarde e brutal assassinato de Cláudia
da Silva Ferreira poderá dar a dimensão da barbárie cometida pelo Estado. O
vídeo mostrado na segunda-feira, dia 17 de março daquele ano de 2014, pelo
Jornal Extra, é terrivelmente chocante. Os três policiais do 19º BPM de Rocha
Miranda, os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves, tratam a auxiliar de serviços gerais e mãe de 8 filhos, quatro naturais e quatro adotados, como se fosse um saco, para usar a forte e, paradoxalmente, impotente expressão do viúvo Alexandre Fernandes da Silva.
Miranda, os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves, tratam a auxiliar de serviços gerais e mãe de 8 filhos, quatro naturais e quatro adotados, como se fosse um saco, para usar a forte e, paradoxalmente, impotente expressão do viúvo Alexandre Fernandes da Silva.
O desprezo policial, como sói acontecer, contamina e/ou é contaminado
pelas diversas outras esferas de poder e da sociedade. A auxiliar de serviços
gerais Cláudia da Silva Ferreira, moradora do Morro do Congonha, que, como se
observa, tem nome, profissão e residência, transforma-se apenas em uma mulher
arrastada pela viatura, segundo os noticiários. Ou então em uma “trabalhadora”,
de acordo com a fala da então ministra Maria do Rosário em seu pronunciamento
no Twitter.
Esta é uma lógica que se repete per seculae seculorum. Os jornais e os
outros veículos da mídia e do poder especializaram-se em retirar não só a
dignidade dos deserdados, mas insistem em não reconhecer nem mesmo o presente
que eles receberam na pia batismal. Aliás, o único momento em que há tratamento
igualitário entre pobres e ricos, já disse e repito, é na
seguinte ocasião: quando um pobre é assassinado ou um rico é detido por tráfico ou algo que o valha, nunca (ou muito raramente) dão-se destaque aos seus nomes. Quando a situação é inversa, isto é, um rico é assassinado e um pobre é preso com uma trouxinha de maconha, aí sabemos toda a árvore genealógica de todos os envolvidos.
seguinte ocasião: quando um pobre é assassinado ou um rico é detido por tráfico ou algo que o valha, nunca (ou muito raramente) dão-se destaque aos seus nomes. Quando a situação é inversa, isto é, um rico é assassinado e um pobre é preso com uma trouxinha de maconha, aí sabemos toda a árvore genealógica de todos os envolvidos.
É absurdamente incrível esta disparidade de tratamento. Para ficar no
campo policial, vale comparar os fatos e procedimentos. A polícia feroz, que
matou o menino Joel e, pouco tempo depois, seu primo Carlos Alberto, aqui no
Nordeste de Amaralina, em Salvador, é a mesma que se porta de modo extremamente condescendente diante de uma agressiva moça que diz ser sobrinha de um juiz e
conhecida do radialista e ex-prefeito Mário Kertész. Eles se guiam pelo
devastador axioma. “Rico também delinque, mas aí não é problema da polícia”.
No entanto, o que queria também destacar é que o dia de ontem não ficou
marcado somente pela barbárie, não pelo menos para mim e para as cerca de 80
pessoas que lotavam o ônibus 1636, com destino à Mata dos Oitis, via orla.
Exatamente no horário do rush, com a cidade toda engarrafada (é incrível como a
atual gestão conseguiu o impossível: piorar o trânsito de Salvador), nervos à
flor da pele, cansaços, estresses, foi possível presenciar um ato de delicada
bravura.
Seguinte foi este.
No primeiro ponto da Avenida Pinto de Aguiar, uma senhora com uma
criança no colo adentrou o ônibus lotado. Nas Condições Normais de Temperatura
e Pressão, o motorista, já exausto por um dia de trabalho e aborrecimentos,
tocaria o bonde sem maiores preocupações. Mas não o motorista do ônibus 1636.
De modo surpreendente, ele parou o buzu e falou com voz serena, mas firme. “Só
sigo viagem se derem lugar a esta senhora”.
Passaram-se pouco mais 30 segundos, que pareciam uma imensidão, tamanho
o constrangimento, até que, enfim, uma pessoa se levantou. A senhora, então,
pode se sentar com seu filho e a viagem prosseguiu normalmente.
Normalmente, vírgula, extraordinariamente. Ali, naquele momento, estávamos presenciando mais um ato de terna bravura daqueles que, apesar das mais duras adversidades do cotidiano, recusam-se a se entregar à barbárie. Aliás, a batalha da serena, mas combativa, delicadeza contra a estúpida brutalidade parece ser a mais importante luta neste Brasil tão desigual e
desgraçadamente dividido.
Por isso, apesar dos dissabores de um buzu completamente lotado, fiquei
o resto da viagem imaginando como seria confortante se o motorista do ônibus
1636, de Mata dos Oitis, fosse o responsável por prestar socorro a Cláudia da
Silva Ferreira.
P.S. Antes de escrever estes rabiscos, fui ao Google para ler algo sobre
a morte de Cláudia da Silva Ferreira. Porém, a referida ferramenta de pesquisa
sempre completava com outro sobrenome. Apareceram as mortes da atriz Cláudia
Magno, ocorrida há exatos 20 anos, a reportagem sobre “O Assassínio de Cláudia
Lessin Rodrigues”, que recebeu o prêmio Esso de 1977, e até mesmo o boato sobre
a “morte” da cantora Claudia Leitte.
(*) Esta crônica faz parte
do livro Ingresia. Foi reproduzida aqui a partir do espaço literário editado
pelo jornalista Carlos Navarro Filho no site Bahia Notícias.
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