(Ilustração reproduzida da Internet) |
Não dá mais para esconder a maior de todas as nossas mazelas: o racismo
institucional, matriz da nossa desigualdade (...) É uma construção gestada ao
longo de quatro séculos de escravidão (...) Não dá mais para rechaçá-lo a
priori, como sempre fizeram os conservadores de direita ou considerá-lo um
problema menor, como os progressistas da esquerda.
Por José Fernandes –
jornalista – transcrito do Facebook, de 29/01/2019 (o destaque acima e a foto
são da edição deste blog)
Nunca se falou tanto sobre racismo e nunca se praticou tanto abertamente
o racismo no Brasil, como agora. A avalanche de atos racistas e a exibição
cotidiana de preconceitos de todos os tipos na mídia tradicional e nas redes
sociais mostram que, 130 anos após a Abolição, o racismo está aí firme e forte,
exibindo a verdadeira cara da “democracia racial” brasileira.
No final da década de 80, uma pesquisa da Universidade de São Paulo
constatou que 95% dos brasileiros afirmavam não serem racistas, embora
admitissem conhecer pessoas que eram racistas. Ou seja: “eu não sou, mas o
vizinho é racista”. Agora, ao que tudo indica, a fase de negação está chegando
ao fim.
Não dá mais para esconder ou negar a maior de todas as nossas mazelas: o
racismo institucional, matriz da nossa desigualdade, principal fundamento da
exclusão e marginalização das populações indígenas e afrodescendentes brasileiras.
É preciso ir mais fundo, ampliar o debate e encarar de frente essa mazela, sem
rechaçá-la a priori, como sempre fizeram os conservadores de direita ou
considerá-la um problema menor, como os progressistas da esquerda.
O racismo à brasileira é uma construção antiga, perversa, gestada ao
longo de quatro séculos de escravidão e que não se extinguiu com a Lei Áurea.
Ao contrário, adquiriu novo impulso depois da República com a adesão de
expressivas parcelas da elite política e intelectual às teses eugenistas, que
propagavam inferioridade dos negros, defendiam o embranquecimento da população
com imigração em massa de brancos europeus, pois o país não teria futuro com
uma população mestiça.
Essas ideias prevaleceram durante os primeiros 40 anos da República,
período em que se consolidam não só os conceitos racistas, mas também a
exclusão dos negros e mestiços da vida econômica e social do país. Na Bahia,
terra de Nina Rodrigues, uma das figuras mais proeminentes do eugenismo, a
situação não era diferente do resto do país.
A elite branca e conservadora considerava a “Cidade da Bahia” a Atenas
do Atlântico Sul, onde os costumes e a cultura europeus prevaleciam, apesar de
sua grande população negra e mestiça. Uma grande ilusão. Salvador era, na
verdade, a cidade mais africana do Brasil, a “Roma Negra”, como a batizou Mãe
Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1937,
A teoria do embranquecimento entrou em desuso na década de 30, após a
publicação de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, livro que abre
caminho para criação do mito da “democracia racial” e inicia uma nova fase do
racismo à brasileira, em que se festeja a mestiçagem, ao mesmo tempo em que se
naturalizam todos os conceitos racistas massificados durante décadas pelos
eugenistas.
Quem tem mais de 60 anos, como eu, já viveu dias piores. Tempos em que,
como diz o poeta, “preto não entrava no Baiano nem pela porta da cozinha”,
tempos em que ter pele escura era ser feio e não ter a “boa aparência”
necessária à maioria dos empregos. Tempos em que para cultuar e festejar os
Orixás era preciso autorização da polícia.
Deve-se reconhecer, porém, que muita coisa na Bahia mudou desde o dia em
que o Ilê Aiyê pisou pela primeira vez na avenida Sete, nos primeiros anos da
década de 70. O carnaval se africanizou, a cidade se rendeu à magia e ao
balanço da música dos blocos afros e, o mais importante, houve uma mudança
substancial na autoestima da população negra, que passou a ter orgulho de sua
ascendência, da sua cultura e, de certa forma, descobriu a sua própria beleza.
É evidente que o que aconteceu em Salvador nesse período é algo
importante: vivemos um processo de inclusão cultural da população negra inédito
no país. Mas, deve-se reconhecer também que esse movimento, devido à sua
debilidade política, não teve força suficiente para abalar as estruturas do
racismo e, muito menos, teve condições de impedir que, ao invés de avançarmos
também na direção de uma inclusão econômica e social da população negra, se
estabelecesse um processo de apropriação cultural que fez a fortuna de meia
dúzia de artistas e empresários da elite branca.
Mas, de qualquer forma, já temos meio caminho andado. É preciso seguir
adiante, tendo consciência de que o racismo à brasileira é estrutural e que por
isso tem que deixar de ser um problema que diz respeito apenas às vítimas. É um
problema de toda a sociedade, principalmente da parcela branca da população,
que é o agente propagador dessa mazela.
Se não for assim, estaremos fadados ao fracasso, porque apenas com o
esforço de combate dos ativistas do movimento negro e o exercício do
politicamente correto pelos segmentos mais esclarecidos e democráticos, nas
redes sociais, não conseguiremos nos livrar ou nem mesmo reduzir o peso dessa
herança maldita no coração do Brasil.
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