João Batista, com a filha Rebeca (Foto: Smitson Oliveira - Seabra/Chapada) |
De
trabalhador rural e ajudante de pedreiro a dirigente sindical e da associação
dos moradores do quilombo Vão das Palmeiras: a dura e exitosa trajetória dum militante
comunitário.
Por
Jadson Oliveira – jornalista/blogueiro – editor do Blog Evidentemente
Corria o ano de 2012. João Batista já tinha passado
por muitos desafios na sua vida de negro pobre, quilombola, mas aquele lhe
parecia maior, mais estranho, uma grande novidade: Tiago queria que ele se
tornasse presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Vão das
Palmeiras (município de Seabra, Chapada, interior da Bahia). Com um detalhe
curioso: disse que era “só no nome, não é pra valer”. Como assim? Tiago
explicou: é que ele era presidente da associação, mas ia ser candidato a
vereador e achava que uma coisa podia impedir a outra. Então ele disputava a
vereança, continuando presidente de fato, mas não oficialmente.
João Batista hesitava. Achava difícil falar em
público, discursar numa reunião e ainda tinha aquele complicador, “só no nome”.
Será que esse negócio ia dar certo? Já tinha se saído bem em muitas empreitadas
na sua ainda curta existência, estava com 28 anos, sempre na labuta, lavrando a
terra, conseguiu a duras penas estudar até o segundo grau, esteve em São Paulo
trabalhando na construção de ajudante de pedreiro durante um ano, depois mais
cinco, nesta altura já promovido a armador. Ao voltar à sua terra, pôde
continuar na construção pois já havia por lá obras do projeto do governo
federal Minha Casa Minha Vida.
Já carregava na carcunda, portanto, alguma
experiência de vida e trabalho. Mas hesitava. Não era homem de se amofinar, mas
hesitava, aquele negócio de ser presidente, tomar a palavra numa reunião, todo
mundo olhando pra ele e se gaguejasse e as pessoas dessem risada? Mas tinha um
precedente encorajador, talvez até tenha sido por isso que Tiago o escolhera:
uma vez se discutia sobre a taxa que as famílias pagavam pela água e era arrecadada
pela associação dos moradores do Velame (distrito vizinho ao quilombo).
Acontece que a água é retirada da área do Vão das Palmeiras e fornecida
inclusive aos usuários do Velame. Então o correto seria a associação do
quilombo cobrar a taxa, inclusive do pessoal do Velame, e ficar com o dinheiro
arrecadado.
Foi o que pensou João Batista, que estava lá
espiando a reunião. Pensou e agiu. Pela primeira vez, passando por cima da
timidez, pediu a palavra e falou numa reunião. “O salão estava cheio”, lembra
ele. Feliz, viu a grande maioria dos presentes apoiar sua intervenção. Foi o
seu batismo de fogo, e vitorioso. Os quilombolas, que eram “donos” da água,
conquistaram o direito de arrecadar a taxa, graças à sua proposta. Estava
nascendo ali uma nova liderança entre a comunidade.
Trocando em miúdos: João Batista acabou topando o
plano de Tiago e, enquanto este se ocupava da campanha eleitoral, o que seria
presidente “só no nome” começou a ser pressionado pelos associados. Havia,
claro, muitas demandas e “você é ou não é o presidente?”, cobravam. E ele foi
assumindo pouco a pouco o papel para o qual parecia estar destinado, conforme
mostrou o desenrolar dos acontecimentos.
Foram dois mandatos de dois anos cada – de 2012 a
2016 -, com muitas lutas, dificuldades e também muitas realizações. João
Batista relembra os passos dessa difícil e exitosa caminhada, fala do respeito
obtido pela comunidade e pela entidade que a representa, exalta o apoio do
grupo de jovens – Jovens em Ação - e dos moradores e também a participação
ativa de sua mulher em toda sua trajetória.
E relata
uma grande alegria: foi justamente num dia em que se comemorava o Dia
da Consciência Negra – 20 de novembro de 2014. Ele estava chegando de Salvador
onde, no dia anterior, tinha recebido o título de propriedade coletiva das
terras do quilombo, em nome da associação. (Aí ele menciona a ajuda nas
articulações políticas do então deputado federal baiano Luiz Alberto (PT),
inclusive no processo de reconhecimento e certificação por parte da Fundação
Palmares, órgão do Ministério da Cultura). Foi uma festa, um momento de
felicidade do qual “a gente nunca esquece”, diria o próprio João Batista.
(Das cerca de 5.000 comunidades remanescentes de
quilombo existentes no Brasil, apenas quase 300 conseguiram até hoje o título
de propriedade da terra, apesar dela ter sido reconhecida oficialmente há 30
anos, expressa na Constituição de 1988, injustiça que atualmente parece mais
difícil de ser reparada, já que o novo governo, presidido por Jair Bolsonaro,
teve sua campanha eleitoral assentada na negação das políticas inclusivas. Aliás,
neste particular, o município de Seabra deve ser um caso raro: dentre os 11
quilombos reconhecidos, 10 já obtiveram seus títulos de propriedade).
E também uma
grande tristeza: foi “ter perdido” para São Paulo um jovem
militante promissor. Alex Soares, pouco mais de 20 anos, teve que deixar sua
gente e sua terra correndo atrás do sonho de ganhar dinheiro e construir uma
casa para a família. João Batista se consola seguro de que ele voltará em
breve, mesmo porque sua casa será, claro, em Vão das Palmeiras. E também
porque, de fato, Alex nunca abandonou totalmente a militância: volta e meia ele
aparece no grupo do Whatsapp opinando, sugerindo, participando.
Ele
revela um sonho: entrar na universidade, fazer o curso de História.
Concluiu o segundo grau em 2005 e lamenta ter sido obrigado a parar. “Não sei
quando será possível, talvez quando os meninos aprenderem a tirar uma melancia
na roça”, brinca João Batista. Ele foi o quarto jovem (o primeiro homem) da
comunidade a completar o segundo grau. De lá para cá esse número aumentou,
inclusive há alguns cursando em Seabra o IFBA (Instituto Federal da Bahia). Diz
meio encabulado que aconselha tanto a juventude a estudar e entrar na
universidade, porém ele próprio, infelizmente, não pôde ainda dar o exemplo
completo. Mas o curso de História o espera, quem sabe?
PS: Além
de agricultor e atualmente tesoureiro da associação, João Batista dos Santos,
hoje com 34 anos, faz parte da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Seabra e dirige uma rádio comunitária.
É casado com Magali Santos Cassimiro e tem quatro filhos.
Tiago José Cassimiro, a quem João Batista sucedeu,
foi o terceiro presidente da associação. Antes dele, a entidade foi presidida
por Eunápio Mendes da Silva (Naipinho). Hoje há uma presidenta: Selma Marques.
A associação tem 380 filiados. O quilombo mede 1.023
hectares, reúne 430 famílias, tendo em torno de 1.000 habitantes, levando em
conta os moradores mais permanentes.
A
maioria das informações é do próprio João Batista. Os dados sobre os 5.000
quilombos reconhecidos no país são de matéria do blog The Intercept Brasil – ‘Com
mais de 4,8 mil comunidades sem títulos, quilombolas entrarão com ação por
danos morais’.
(Este
blog postará em seguida matéria sobre as realizações da comunidade, conseguidas
através da associação e o grupo de jovens).
Comentários
Feliz de ter participado (enquanto Coordenadora de Ações em Quilombos da CDA, à epoca) dessa grande alegria que foi a titulação do território da comunidade pelo Estado. E é preciso continuar lutando para que todos consigam exercer os direitos conquistados em séculos de resistência. Afinal... é na luta que se faz um líder quilombola, não é? Vamos a ela! AXÉ!