MÁRIO MAGALHÃES: QUANDO UM ANTIGO JORNAL DEIXA DE CIRCULAR EM PAPEL

A tendência dos jornais abolirem a edição papel, deixando só a versão online, vai se alastrando (Foto: Correio do Brasil)
Com 143 anos de existência, deixou de circular em papel o terceiro jornal mais antigo do Brasil

Por Mário Magalhães, de São Paulo – reproduzido do jornal digital Correio do Brasil, de 10/02/2016

Há quase 22 anos.  Eu mal entrara na residência do jornalista potiguar Lauro da Escóssia Filho quando o anfitrião me chamou para conhecer um móvel de madeira. O belo armário escuro ficava no corredor. Pensei que o dono da casa retiraria um livro ou fotografia para recordar batalhas de outrora. Recordou-as, mas apontando para alguns orifícios. Com o sorriso tímido que nunca o abandona, disse a seco, como um estampido:
“Bala. Tiro”.
Diante do meu espanto, emendou:
“Ser jornalista no Sul é fácil. Quero ver aqui”.
Estávamos em Fortaleza, mas o jornalista falava de Mossoró, segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Norte.
Lá, seu bisavô Jeremias da Rocha Nogueira fundou em 1872 o jornal “O Mossoroense”.
A Abolição e a República ainda estavam por vir. A nova publicação, panfletária como era o padrão da época, batia-se por aquelas causas. Como quase todos os periódicos, viveria os seus grandes e pequenos momentos. O armário furado é troféu de guerra, testemunha de um atentado contra o jornal e Escóssia Filho, já no comando da redação.
No dia 31 de dezembro de 2015, há menos de duas semanas, “O Mossoroense” publicou sua derradeira edição em papel, 143 anos, dois meses e 15 dias depois da primeira que circulou.
De acordo com o ranking da Associação Nacional dos Jornais, “O Mossoroense” é o terceiro jornal mais antigo do Brasil (para “O Mossoroense”, da América Latina). Mais jovem apenas que o “Diário de Pernambuco” e o carioca “Jornal do Commercio”. Mais velho que os veteraníssimos “O Estado de S. Paulo” e o gaúcho “Correio do Povo”.
A luta de “O Mossoroense” continua, 100% na internet. “O papel de informar não tem limite”, proclamou sua manchete final impressa. O diretor de Redação, Cid Augusto, assinalou: “Nosso papel é a notícia. E o mundo, nosso limite”.
O silêncio na gráfica não surpreende. O diário ganhou sua versão on line em 1999. No princípio, os acessos somavam uma centena por jornada, em contraste com os 5.000 exemplares impressos. Nos últimos tempos, não rodavam mais de mil jornais por dia, na cidade de 290 mil habitantes, enquanto as visualizações no site alcançam 80 mil. Seus leitores dividem-se por 59 países – a Índia só perde para o Brasil e os Estados Unidos.
A mudança permitirá a “O Mossoroense” se concentrar na plataforma com mais leitores. A recessão que castiga o país deve ter contribuído para a extinção do formato impresso. Mas o fim é sobretudo produto da fadiga do dito modelo de negócios que permitiu a pujança das companhias jornalísticas no século 20.
Agora, há menos leitores do jornalismo impresso, cujas tiragens despencam. E menos anunciantes, que costumavam responder pela maior fatia das receitas. As diferentes mídias se concentram numa só plataforma, a internet, onde se colhe mais audiência e se busca, com dificuldades, o faturamento publicitário do passado. O jornal em que eu engatinhei como repórter, a “Tribuna da Imprensa”, acabou. O “Boston Globe”, diário norte-americano muito comentado por causa do filme “Spotlight: Segredos revelados”, foi vendido em 2013 por US$ 70 milhões - custara US$ 1,1 bilhão 20 anos antes. Não vi em nenhum canal de TV o jogo do Barcelona pela Copa do Rei na semana passada, e sim pelo Youtube, de graça (o “de graça” é sempre relativo, mas os espectadores não tiveram de pagar pela transmissão).
Em 1917, João da Escóssia, avô de Lauro da Escóssia Filho, importou da França uma impressora Marinoni. Sem impressora, não havia jornal. Foi a Marinoni que rodou a edição em que, num furo histórico de 1927, o repórter Lauro da Escóssia (pai) entrevistou na cadeia o cangaceiro Jararaca, do bando de Lampião. Logo depois, mataram Jararaca, hoje reverenciado como santo por muita gente. A impressora está exposta no museu municipal de Mossoró.
Que jornais ainda se animam a investir em impressoras? Elas são, contudo, vitais às editoras, pois os livros impressos mantêm e devem continuar mantendo a hegemonia em relação aos e-books.
A despedida de “O Mossoroense”, patrimônio do jornalismo brasileiro, em papel, não sugere que todas as publicações impressas terão idêntico destino, que será o de muitas delas. Mas que conviverão cada vez mais jornal em papel e jornal digital, lido (e assistido e ouvido) principalmente em dispositivos móveis.
Lauro da Escóssia Filho, 83, vendeu - ou de alguma forma foi obrigado a vender - “O Mossoroense” na década de 1970. Ele representa a quarta geração consecutiva de jornalistas de sua família. Uma filha assegurou a quinta. Pelo que eu tenho reparado na gurizada lá em casa - uma neta e um neto de Lauro -, dificilmente haverá sexta geração.
(Publicado originalmente no blog do autor).
Mário Magalhães nasceu no Rio em 1964. Formou-se em jornalismo na UFRJ. Trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Tribuna da Imprensa. Recebeu mais de 20 prêmios. É autor da biografia ‘Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo’.

Direto da Redação é um fórum de debates com jornalistas de opiniões diversas, editado pelo jornalista Rui Martins.

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