Foto do julgamento (reproduzida da Carta Maior) |
Testemunho do médico forense inocenta camponeses, presos políticos há
três anos e meio. Armamento pertencia às forças de elite da polícia paraguaia.
Por Leonardo Wexell Severo,
de Assunção – reproduzido do portal Carta Maior, de 15/02/2016
Os seis
policiais militares do Grupo Especial de Operações (GEO) que morreram em Marina
Kue, Curuguaty, no dia 15 de junho de 2012, foram abatidos com armas de “grosso
calibre”, atestou o médico forense Floriano Irala. O testemunho comprova a
inocência dos camponeses, pois além da força de elite da GEO, somente policiais
do FOPE (Força de Operações da Polícia Especializada) portavam fuzis Galil
durante o “confronto” em que também faleceram 11 sem-terra.
O
enfático e detalhado pronunciamento de Irala caiu como uma bomba no Palácio da
Justiça, em Assunção, na última terça-feira. A declaração, sob juramento, abriu
uma semana de depoimentos que colocaram por terra a chicana patrocinada pelo
desgoverno de Horacio Cartes. Segundo o serviçal das transnacionais e do
latifúndio, 324 policiais fortemente armados teriam sido vítimas de uma
“emboscada”.
Comprovadamente
uma terra pública, destinada à reforma agrária, Marina Kue vinha sendo alvo de
uma campanha midiática em favor da empresa Campos Morombí, grileira de milhares
de hectares na região desde os tempos da ditadura de Alfredo Stroessner
(1954-1989). A chantagem chegou até a Câmara dos Deputados, onde parlamentares
servis ao agronegócio aprovaram em janeiro de 2012 uma ordem de “averiguação”,
logo ilegalmente transformada em sangrento despejo de 60 camponeses - metade
deles mulheres, crianças e idosos – acampados no local.
Identificando
um a um, esclarecendo caso a caso, o médico Floriano Irala foi explicando sobre
o macabro destino reservado pelas “armas de grosso calibre” aos seis policiais
da GEO: os suboficiais Godoy e Jorge Sanchez foram fulminados com uma bala
certeira; o subcomissário Erven Lovera, três; Wilson Cantero, cinco; Derlis
Benitez, 11 e Osvaldo Sánchez, 13.
O estudo
de Floriano Irala se choca com a hipótese defendida pelo promotor Jalil Rachid,
amigo da família de Blas Riquelme, que se advoga dona das terras em questão, e
que foi premiado recentemente por Cartes com o vice-ministério da Segurança. No
posto, o filho de Blader Rachid, que foi presidente do Partido Colorado (do
ditador Alfredo Stroessner, como Blas Riquelme) controla a polícia e incide
diretamente sobre mais de uma centena de depoentes no processo de Curuguaty.
De acordo
com Jalil, o comandante da ação, Erven Lovera, teria sido morto pelos
camponeses, dando início ao “confronto”. Irala declarou que tanto o
subcomissário quanto os demais policiais a seu lado foram abatidos com armas
automáticas. Armas de grosso calibre e de repetição – até 50 tiros, como o
Galil israelense – que os sem-terra jamais sonharam ter. E que tiveram de
enfrentar.
A
Promotoria também vendeu para a opinião pública, durante mais de três anos, que
os camponeses dispunham de bombas caseiras, “coquetéis molotov”, hoje comprovadamente
lampiões com querosene. Já as perigosas “armadilhas” disseminadas para
assassinar os policiais, repetidas à exaustão pela mídia, nada mais eram do que
“ratoeiras” para matar pequenos animais silvestres e encontravam-se amontoadas
em uma barraca, sem terem nem ao menos como disparar. Ambas questões foram
esclarecidas pelo criminalista Élvio Rojas Peña e viraram motivo de chacota.
FRANCO-ATIRADOR(ES)?
“Lovera e
as lideranças dos camponeses estavam dialogando, se saudaram, cumprimentaram e
em questões de segundos ocorreram os disparos”, relatou o suboficial Jorge
Arguello. Posicionado à frente de um grupo de policiais no momento em que tudo
começou, Arguello não encontra justificativa para a tragédia. O helicóptero de
reconhecimento, disse, vinha sobrevoando baixo exatamente no local em que o
comandante e os líderes dos camponeses se encontravam reunidos e fez três
advertências aos sem-terra. Logo, a aeronave saiu rapidamente e só se ouviu que
o confronto havia iniciado, relatou.
Conforme
os advogados dos camponeses, o movimento do helicóptero tanto poderia servir
para identificar o local e o alvo para franco-atiradores, como os tiros em
Lovera (lineares, na vertical, onde não estava protegido pelo colete à prova de
balas) poderiam ter sido disparados da própria aeronave. Aqui convém ressaltar
que o piloto do helicóptero, importante peça do quebra-cabeça, morreu em um
“acidente” aeronáutico antes de depor. A trama se torna ainda mais intragável
quando é pública e notória a histórica participação da CIA e do Pentágono em
várias “ações de campo” no Paraguai, sempre com o argumento do “combate ao
terrorismo”. Tal “parceria” foi paralisada apenas durante o governo Lugo.
“Lovera
fez curso comigo nos EUA na área de inteligência e de antiterrorismo na
Colômbia, além de outros cursos em Washington”, explicou o comissário Walter
Saul Gomes Benítez, acrescentando que nestas oportunidades se aprendiam
fundamentalmente “técnicas de como tirar informação”. Perguntado pelo advogado
Victor Azuaga se eram cursos patrocinados pela CIA ou pelo Pentágono, Benítez
respondeu que só sabia que eram bancados pelo “Estado norte-americano”.
ESQUENTA O TEMPO
Esquentando
ainda mais o tempo de Assunção, beirando os 40 graus, o suboficial de
criminalística Elvio Rojas confessou ter guardadas mais de 200 fotografias
e filmagens do resultado do “enfrentamento”, todas de sua própria autoria.
Passados mais de três anos e meio do sangrento episódio, os materiais já
deveriam ter sido entregues durante a etapa de coleta das evidências. Serão
finalmente apresentados e anexados ao processo na próxima semana, como “novas
provas”.
“O fato
da Promotoria dirigida por Jalil Rachid não ter solicitado as fotografias e
filmagens comprova que classificou só o que poderia incriminar os camponeses,
que são vítimas de um processo completamente viciado”, declarou o advogado
Amélio Sisco. De acordo com Sisco, “são reiteradas as oposições feitas pela
Promotoria para que não sejam incorporados novos elementos, pois demonstram o
contrário de tudo que ela vem afirmando até agora, sendo comprobatórios da
inocência dos camponeses”.
Responsável
pela inspeção dos corpos na área do enfrentamento, o médico forense Matias Arce
disse que encontrou nove cadáveres, sendo que cinco mais ou menos juntos,
próximos às barracas erguidas pelos sem-terra. Algumas horas depois foram
achados mais dois corpos, a cerca de 40 metros de distância. Questionado pela
defesa, o médico afirmou que os corpos haviam sido movidos de local antes da
sua chegada, tendo encontrado a todos com a boca para cima - algo totalmente
fora do comum – à exceção de um deles, de costas, com o crânio esfacelado.
No dia
seguinte ao morticínio, o promotor Jalil Rachid foi indicado para ser o
responsável da “causa”, que envolvia o começo do golpe que levaria à derrubada
do presidente Fernando Lugo uma semana depois, freando o processo de democratização
da estrutura agrária paraguaia. Dados do último censo (2008) apontam que
somente 2,5% dos proprietários detêm 86,5% das terras do país que, penalizado
pelo monocultivo da soja, vê os preços dos alimentos dispararem.
A fome e
a miséria pegam pesado, particularmente no estômago da população indígena,
enxotada pelos grandes proprietários rurais. Ao longo da semana, noticiaram os
jornais, cães foram mortos para saciar a fome de alguns destes miseráveis. Nem
uma vírgula sobre o governo Cartes, responsável pela tragédia humanitária. E
canina.
FOTOS E MAIS FOTOS
O médico
Matias Arce também admitiu ter fotografado os cadáveres dos sem-terra e que as
imagens se encontram gravadas em seu computador. A pedido da defesa, serão
entregues e incorporadas ao processo.
O informe
do médico forense sintetiza, “tecnicamente”, como foram encontrados os corpos
dos 11 camponeses mortos: Delfín Ayala, ferido com orifício de entrada e saída
(local não registrado); Fermín Paredes, vários orifícios: braço direito, região
clavicular, abdômen e tórax; Arnaldo Ruiz, ferida no tórax, lado direito;
Luciano Ortega, vários orifícios na cabeça com entrada e saída, três orifícios
no tórax, no lado esquerdo do abdômen, dois orifícios de entrada no músculo
esquerdo, braço direito com orifício de entrada e saída, vários orifícios no
braço, tórax e joelho direito; Francisco Ayala, ferida de bala no lado esquerdo
do pescoço com orifício de saída detrás da orelha, ombro direito, e na saída no
tórax, lado esquerdo; Francisco Ayala, ferida de bala no lado esquerdo do
pescoço, com orifício de saída detrás da orelha, ombro direito e na saída do
tórax, no lado esquerdo; Andrés Riveros, ferida na clavícula esquerda, com
orifício de saída na mesma altura; Adolfo Castro, explosão do crâneo e ferida
no ombro esquerdo a nível do tórax e outra em cima da mesma, igual que no
antebraço esquerdo e músculo do mesmo lado, além de fratura do fêmur; Avelino
Espínola, ferida no tórax, perna direita com orifício de entrada e saída;
Delfín Frutos, ferida na cabeça, lado esquerdo do pescoço, ombro direito, axila
e dedo indicador esquerdo; De Los Santos Aguero, ferida nos músculos esquerdo e
direito, e fratura do fêmur e Luis Paredes, ferida na cavidade bucal com saída
detrás da orelha (indicando execução).
Trazendo
novos elementos, o oficial inspetor Carlos Dario Garcia Valenzuela comunicou
que fazia parte de um segundo efetivo da FOPE enviado para Curuguaty, mas que
só chegou após o conflito. O policial disse que a partir das 13:30 horas seu
contingente já dominava o local, quando um pouco mais tarde, “apareceu uma
pessoa num veículo e começou a recolher materiais. Questionado, se retirou”.
Mais, que às 16 horas, “outra pessoa comunicou que tinha ordem de seus patrões
para incinerar tudo”. Esta pessoa era alguém da fazenda Campos Morombí, tida
pelos agressores como os senhores do local. “Nós deixamos que fizesse o que
havia vindo fazer, queimar colchões, roupas e barracas”, relatou o oficial,
reconhecendo com todas as letras que o local do crime ficou completamente
comprometido. Valenzuela disse que, na oportunidade, foi encontrado um dos
famosos cadernos de apontamentos de “colaboração financeira” e listagem de
“vigilantes” com nomes, sobrenomes e apelidos, utilizados pela acusação para
sustentar sua tese de “organização criminosa”. Para protegerem-se de uma
tormenta, alegou, a tropa recebeu ordem de “permanecer na estância” de sexta
até a quarta-feira seguinte. Foi nesta ocasião em que teriam “perdido” o tal
caderno, indo a suposta prova, literalmente, por água abaixo.
Lendo o
script entregue pela promotoria, a “psicóloga” que acompanha quatro dos
policiais agressores extrapolou. Segundo ela, o suboficial da GEO René Toledo
Silva lhe disse que em 20 anos passou por muitos enfrentamentos, com narcotraficantes
e todo tipo de delinquentes, mas jamais viu “criminosos tão sem compaixão” como
os camponeses de Curuguaty.
Em
contraposição às agressões da mercenária, o bispo do estado de
Misiones, Monsenhor Mario Melanio Medina, denunciou o massacre como “uma
montagem”. "Tudo foi orquestrado. Imaginem matar dois, três pássaros com
um só tiro. Vamos culpar os camponeses, a Lugo e, na sequência, defender o que
o governo Cartes está defendendo", declarou o bispo de Misiones,
reiterando que as terras ocupadas são do Estado e não da família Riquelme.
SOLIDARIEDADE CONTRA A INJUSTIÇA
Diante
das ameaças do governo, seus juízes e sua mídia de trancafiarem os camponeses
por até 30 anos, cresce a solidariedade com os presos políticos. Um bom exemplo
é o da professora Margarita Durán Estrago, da Universidade Católica de
Assunção, que está vendendo uma rifa em benefício dos familiares das vítimas de
Curuguaty. Os prêmios são genuínos: um leitão, três galinhas caipiras, três
quilos de queijo, três quilos de farinha de milho e duas dúzias de ovos
caipiras.
“Após uma
longa mobilização, os camponeses encontram-se em prisão domiciliar, em um
albergue pós-penitenciário que é uma obra conjunta do Ministério do Trabalho e
do Arcebispado de Assunção. O Estado não se responsabiliza pelos alimentos, só
do transporte. Os defensores também são voluntários, não têm honorários e são
do interior. Quando vêm para a capital, têm a hospedagem, mas não a
alimentação. Os camponeses também querem trazer seus familiares, que dão uma
força no julgamento com a sua presença. Tudo isso tem um custo e a solidariedade
torna-se fundamental”, sublinhou Margarita.
“Esta foi
uma semana excelente para o pleno restabelecimento da verdade”, comemorou o
advogado Victor Azuaga, assinalando que “as testemunhas desmontaram teorias
absurdas da acusação, como a de emboscada, já que as tropas da GEO e da FOPE é
que cercaram os camponeses. Também caíram as teses das bombas incendiárias e
das armadilhas”. Outras acusações como a de invasão de imóvel alheio e de
organização criminosa igualmente se esvaem, apontou Azuaga, uma vez que a terra
é pública e a organização social dos camponeses estava inscrita no Indert
(Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra). Em outras palavras,
os sem-terra lutavam por seus direitos dentro da legalidade, buscavam terra
para trabalhar. “O resultado destes dias coloca o julgamento em um novo
patamar”, concluiu.
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