ARGENTINA: A DETENÇÃO DA DIRIGENTE SOCIAL INDÍGENA MILAGRO SALA - POR RAÚL ZAFFARONI

(Foto: reprodução/Carta Maior)
A prisão vai adquirindo a dimensão de um escândalo institucional sem precedentes nos trinta e dois anos de vida constitucional argentina.
Por Raúl Eugenio Zaffaroni (*) – reproduzido do portal Carta Maior, de 03/02/2016
Às vezes se faz necessário recapitular e explicar as situações. No caso da detenção de dirigente social indígena Milagro Sala, que vai adquirindo a dimensão de um escândalo institucional sem precedentes nos trinta e dois anos de vida constitucional continuada que a Argentina tem a sorte de viver atualmente, é importante destacar, ainda que a explicação nos obrigue a comentar alguns termos técnicos, mas que o público precisa conhecer.

1) A detenção é decidida por uma instância da Justiça  – o Superior Tribunal da Província de Jujuy, onde a organização de Sala atua – cujo pleno foi ampliado numa sessão noturna da Assembleia Legislativa local. Em seguida, dois dos deputados governistas que votaram pela ampliação do número de representantes do tribunal foram nomeados juízes desse Superior Tribunal ampliado. Nem mesmo Menem em seus melhores tempos chegou a fazer essas coisas.

2) A detenção foi ordenada por um juiz que imediatamente pediu licença, após imputar a ela o delito do artigo 194 do código penal: “impedir, estorvar ou entorpecer o normal funcionamento dos transportes por terra”.

Este artigo foi introduzido em 1968 por uma lei “de fato” – do presidente de fato Juan Carlos Onganía (Nota deste blog: presidente "de fato" equivale a ditador, "de fato" em oposição a "de direito") – sem indicação de fonte nem referência ao direito comparado, e substitui o antigo texto original do código que punia o vandalismo contra vias ferroviárias.

O mesmo artigo indica que a ação que se enquadra no mesmo não produza risco de catástrofe, porque em tal caso configuraria um delito contra a segurança pública. Não se trata, portanto, de condenar uma simples moléstia causada por uma manifestação social nas ruas – vimos que o exemplo se deu com um caso de vandalismo a trilhos ferroviários, e as consequências realmente graves que isso pode ter.

No caso da manifestação liderada por Milagro Sala não há risco algum para ninguém, apenas perturbação do transporte urbano, levando os motoristas a terem que circular por outras artérias, nada mais que isso.

Aplicar literalmente o texto do artigo 194, ignorando o direito à manifestação pública, considerando que toda reunião de pessoas perturba de alguma forma a circulação de pessoas e veículos, implicaria cancelar o direito constitucional de reunião e de petição coletiva.

Mas a perturbação do trânsito urbano não foi produzida por Milagro Sala, e sim por milhares de pessoas. Ainda que essas milhares de pessoas se reúnam nas calçadas, obrigando os transeuntes a circular pelos meio fio ou pelo meio da rua, perturbando a circulação, nem assim estariam cometendo um delito.

Isso é assim porque o corpo de cada um de nós suja, ou molesta, ou perturba, e muitos corpos juntos mais ainda, mas os humanos, individual ou coletivamente, não podemos prescindir dos nossos corpos. Tomar literalmente o artigo utilizado contra a líder indígena implica, portanto, proibir a reunião de pessoas.

3) Como isto é bastante frágil a acusação principal, agregou-se a ela a acusação de delito de “sedição”, do artigo 230, que se comete quando “uma força armada” ou “reunião de pessoas” peticiona em nome do povo.

Sempre se entendeu que quando se trata de uma reunião de pessoas, deve haver pelo menos uma ameaça de violência, um perigo análogo ao de uma “força armada”, porque se não deveriam ser processados todos os políticos que falam em nome do povo em suas campanhas políticas.

Também se pretende agravar o caso pelo fato de envolver crianças, aplicando o artigo 41 do código, que agrava a pena de quem se vale de um menor para cometer um delito, um mecanismo que foi pensado para casos de roubo.

4) Como se considera que tudo isso é um delito e que Milagro não parou de apoiar os protestos públicos, ela é acusada de “instigar o público a cometer delitos” (artigo 209), embora seja, na prática, uma instigação ao público a cometer “não delitos”.

5) Quando toda essa argumentação se derruba e vem a ordem de soltura, aparece outra acusação de imediato, por “administração fraudulenta” (artigo 173), o que a obriga a continuar presa, mas como esse delito tem uma pena máxima de seis anos, ela também deveria responder ao processo em liberdade – creio que ninguém sofre prisão preventiva por esse delito no país.

Para evitar a sua liberação por um novo “delito”, se lhe imputa “associação ilícita” (artigo 210).

A associação ilícita se consuma se três ou mais pessoas, mesmo que seja numa noite de bebedeira, planejam cometer “delitos”, ainda que depois não façam nada. Interpretado literalmente, utilizar essa alegação é, obviamente, inconstitucional, a não ser que estejamos falando de casos graves, como genocídio, terrorismo ou algo parecido.

Um simples acordo está muito longe de um primeiro ato de tentativa de qualquer delito. Além do mais, com a interpretação literal, a pena é irracional: o simples acordo para cometer furtos em lojas (pena de um mês a dois anos) tem uma pena de até dez anos, ainda quando nem exista tentativa de cometer o delito de furto.

O artigo 210 (associação ilícita) geralmente é usado, como neste caso, como um mero instrumento para que se negue a liberação, ainda que depois não se chegue a condenação nenhuma.

Em nosso código penal originário, de 1921, esse delito tinha uma pena leve, mas em 1974, devido à onda de violência política, ela foi aumentada, e depois disso foi piorada.

Como se isso já não fosse o bastante, não é possível negar que a genealogia da associação ilícita se remonta aos tempos em que fazer greve era delito, como instrumento de repressão contra os sindicatos.

Com isso não estamos dizendo nada de novo. Só recapitulamos a lógica retorcida, antijurídica e republicanamente inconstitucional com a qual se maneja este verdadeiro sequestro legalizado.

Se Milagro Sala foi ou não prolixa no manejo de fundos e isso requer investigação, que se faça a tal investigação, mas de forma legal e constitucional, num processo com juízes imparciais e não com parentes e correligionários e, enquanto isso, que a deixem em liberdade, como se faz com todos os processados por esse delito.

Este festival de vergonhosas aberrações penais, de invenções pseudo jurídicas sem muita imaginação é escandaloso.

Ademais, não é possível se omitir diante de outro fator que chama a atenção: Milagro é deputada regional, e portanto tem foro especial, o que não impede o processo, mas sim a sua detenção.

Não é verdade que esses foros sejam “inconstitucionais” porque não se podem estabelecer por lei, já que, neste caso, não estão estabelecidos por lei e sim por um tratado internacional ao qual o Estado Argentino se comprometeu.

Como, ainda em meio aos transes mais dramáticos, não podemos nos deixar abater pela tristeza, nem perder o humor, me permito um momento de autocrítica, como professor de Direito que costuma reprovar poucos alunos. 


Também me permitiria sugerir aos juízes “criativos” que explorem outras possibilidades: quiçá possam pensar que toda reunião de pessoas é contaminante e apelar a alguma figura de proteção do meio ambiente. Mas, por via das dúvidas, faço a advertência de que não existe nenhuma figura de “aborto qualificado por escalonamento”.

(*) Ex-juiz da Corte Suprema, atual integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Tradução: Victor Farinelli

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