PARAGUAI: “MASSACRE DE CURUGUATY POSSIBILITOU O ASSALTO DAS MULTINACIONAIS AO PODER POLÍTICO”

(Foto: Reprodução/Carta Maior)
“Na prática ocorrem três coisas: um genocídio, um ecocídio e um etnocídio”, denuncia o líder camponês paraguaio Ernesto Benítez.

Por Leonardo Wexell Severo e Nicolás Honigesz, de Assunção – reproduzido do portal Carta Maior, de 08/01/2016

Dirigente da Coordenadora de Produtos Agropecuários de São Pedro Norte e destacada liderança do movimento camponês do Paraguai, Ernesto Benítez carrega consigo as marcas de quem nunca se rendeu aos poderosos de plantão.

Em 7 de setembro de 1995, foi um dos 21 feridos à bala durante ataque da Polícia Nacional contra manifestantes em Santa Rosa del Aguaray. Na oportunidade foi assassinado Pedro Giménez, de apenas 20 anos. “Os policiais me dispararam com uma escopeta e quase perdi a vida. Tiveram que extirpar uma parte do pulmão”, conta. Em 2003, durante protesto com 16 feridos à bala, em que foi assassinado Eulalio Blanco, Benítez foi levado à Delegacia de Santa Rosa, onde foi torturado por militares e policiais.

Na sua avaliação, enquanto não houver reforma agrária e o poder dos grandes produtores de soja e das multinacionais continuar intacto, “não haverá justiça no Paraguai”. Para Benítez, este é o grande nó do embate judicial que cerca o julgamento do massacre de Curuguaty: “Se os companheiros saírem livres e fica claro que é uma terra pública, o que entrará em pauta são os 10 milhões de hectares grilados que foram parar nas mãos do latifúndio”.

“Outra questão fundamental é que foi com o massacre de Curuguaty que se montou o golpe de Estado e o assalto das multinacionais ao poder político”, frisou. O “confronto” entre 324 policiais fortemente armados com fuzis Galil, escudos, bombas de gás lacrimogêneo, cavalos e helicóptero, e 60 camponeses – metade deles mulheres, crianças e idosos - em Marina Kue, Curuguaty, ocorreu no dia 15 de junho de 2012. O presidente Fernando Lugo foi afastado uma semana depois de um “julgamento” relâmpago.

Abaixo, a íntegra da entrevista.

O último censo do Paraguai, de 2008, aponta que 85,5% das terras do país estão nas mãos de 2,5% dos proprietários. O que mudou nos últimos anos?

 
Creio que a situação de desigualdade vem piorando aceleradamente. Atualmente, com este novo governo que definimos como o da etapa da transnacionalização definitiva, isso se aprofundou, porque atende unicamente os interesses de umas 200 famílias da burguesia local e é subordinado ao capital internacional. Por isso ataca sistematicamente a população indígena e camponesa, com as instituições do Estado atuando abertamente a favor dos interesses das multinacionais. Então, produto da pobreza e da violência, a desigualdade vem se aprofundando.

No Paraguai os produtores de soja praticamente não pagam imposto. Como é isso?
 
Houve muitas tentativas no último período por parte das organizações camponesas, articulando com parlamentares da Frente Guazu e de outros representantes de partidos de centro, progressistas, de seguir adiante com um estudo no parlamento e, posteriormente, trabalharmos para a promulgação de uma lei que estabeleceria o pagamento de 12 a 15% de impostos por parte dos sojeiros. Houve o estudo no parlamento, passou nas duas casas e chegou ao presidente, que o vetou. E continuou valendo a lei anterior que não chega a 3% do pagamento de impostos.
 
O que é praticamente nada.
 
É nada. Só a população em seu conjunto paga 10% de imposto, de IVA. São os pobres que sustentam o funcionamento do Estado neste país.
 
Podemos sentir o aumento dos preços não só da cesta básica, como da comida em geral. Há um mar de soja, um enorme rebanho bovino e praticamente nada mais. Toda a lógica é produzir para exportar. Como ficam os pequenos produtores neste jogo?
 
Se fazemos uma análise mais profunda, o momento histórico que vivemos é realmente doloroso. Há uma disputa entre uma força hegemônica dominante, que são os proprietários do agronegócio, e a população indígena e camponesa que trata de sobreviver e está resistindo. Não são somente dois modelos econômicos, senão duas visões, duas formas de ver e de viver o mundo.
 
Descreva rapidamente este embate.
 
O modelo hegemônico, que se chama tecnicamente de agronegócio, nós o definimos como um olhar unidimensional. A terra é meio de produção: a água, a árvore, a semente, as plantas, os animais, o ser humano, tudo é mercadoria. É unidimensional: se vê tudo como dinheiro. Já nosso olhar é multidimensional, porque a terra não é somente terra, é território, é espaço de vida.
 
Em toda a sua plenitude...
 
A terra é primeiramente um espaço ecológico, onde o ser humano convive com o resto da natureza em mútua inter-relação. As árvores são fundamentais porque garantem a vida. O ser humano é o mais indefeso e mais dependente, necessita das árvores para respirar. É fundamental que exista água limpa porque o corpo e o cérebro estão cheios de água. Então a terra é espaço de inter-relação com a natureza, é espaço social, onde o ser humano se ajuda mutuamente, se solidariza. 

Nosso território é espaço cultural. Como diz a população indígena, a guarani fundamentalmente, sem território não há cultura, pois é onde as pessoas nascem, trabalham, falam, cantam, jogam, rezam, morrem... É toda sua construção de solidariedade, humanismo, respeito à natureza. É espaço político, onde ganha autoridade a partir do seu humanismo, das suas atitudes para com os demais. É espaço tecnológico também porque de acordo com a sua forma de ver o mundo desenvolve técnicas produtivas para lhe garantir a sua sobrevivência, ferramentas que não danem muito a natureza. É espaço econômico também porque é espaço de trabalho onde produz alimento básico para a subsistência.
Definitivamente é um espaço filosófico onde se desenvolve toda uma cosmovisão, toda uma forma de entender e de viver o mundo. 

Então, além de um modelo econômico, o agronegócio que é iminentemente produção de grãos, de mercadorias, de carne para os países centrais, para nós, para a população indígena e camponesa, é espaço de vida. Ou seja, além do choque entre dois modelos econômicos, são duas formas de entender o mundo, o que gera muita violência.
 
Houve uma expansão enorme do agronegócio com reflexos perversos para a população.
 
Dos 40 milhões de hectares que têm o nosso país, cerca de 38 milhões já estão nas mãos do agronegócio. Ao redor de dois milhões e um pouquinho estão nas mãos de 33% da população paraguaia, indígenas e camponeses que são ao redor de dois milhões e meio. Para a consolidação desse modelo do agronegócio eles necessitam expulsar toda esta população que ainda resiste no campo. Por isso recorrem à violência.
 
Vocês estão denunciando que esta lógica está levando a um genocídio.

Na prática ocorrem três coisas: um genocídio, um ecocídio e um etnocídio. As autoridades tratam por todos os meios de encobrir o genocídio, de silenciar, para que a população não veja, não entenda o que está se passando. Apesar disso, o fato é que ao longo destes últimos 20 anos foram assassinados por policiais, militares e jagunços muitíssimos camponeses. Porém, não se assassina apenas com balas. É com agrotóxicos que matam mais gente, adultos, anciões e crianças, também expostos a todo tipo de deformações que obrigam as famílias a fugir do campo.
 
E a devastação ambiental?

Se dá um ecocídio também. Porque nos últimos quatro anos colocaram abaixo quatro milhões de hectares de bosque (floresta). Hoje no Paraguai se colocam abaixo 1.500 hectares de bosque (floresta) por dia. A morte dos bosques, rios, riachos, lagos que vão secando rapidamente, o que vai gerando grande perda de recursos naturais.

O que é mais triste?

O mais doloroso é o etnocídio, a morte cultural de um povo. Para nós, a terra é elemento essencial da construção enquanto nação, como povo paraguaio. Quando perdemos a terra, já não somos mais o que éramos antes, perdemos nossa raiz. O contato com a terra é fundamental para a nossa sobrevivência cultural e nossa construção como nação. Então todos estes elementos vão se desenvolvendo no campo. São ao redor de um milhão e meio de paraguaios que tiveram de migrar para as cidades ou ir para o estrangeiro nas últimas duas décadas. Para nós isso é muita violência, e é também muito doloroso para a população indígena e camponesa que luta, se sacrifica e se esforça.

É uma agressão impressionante, porque se dá em todos os planos...

É muito brutal, é muito cruel o inimigo porque eles têm todo o aparato do Estado em suas mãos. São as multinacionais que com crueldade avançam com uma força tremenda sobre o nosso território e vão destruindo tudo.

Isso explica porque na segunda greve geral contra o governo Cartes, realizada recentemente, a bandeira da reforma agrária tremulou alto?

Historicamente a reforma agrária tem sido uma bandeira fundamental para o nosso país, para a população do campo e da cidade. É um instrumento fundamental para assegurar a sobrevivência de uma boa parte da população no campo e alimento para a cidade. Hoje em dia, fruto do empobrecimento extremo da população camponesa e indígena, muitos dos produtos que se consomem no país precisam ser importados. Como a produção vai ficando nas mãos das multinacionais o que se come no campo, e fundamentalmente na cidade, é extremamente prejudicial porque está cheio de agrotóxicos: o tomate, o pimentão, o morango. Todos os produtos básicos que se consomem diariamente no país entre frutas e verduras recebem de 12 a 15 fumigações em seis meses. É algo brutal. 

Por isso se falamos da construção de um país democrático, um país que se preocupa com o bem-estar do seu povo, pela alimentação saudável, é fundamental mudar esta estrutura agrária injusta que beneficia um punhado de proprietários locais e estrangeiros e prejudica a quase sete milhões de paraguaios e paraguaias.

Vem daí um importante elemento para a unidade dos movimentos sociais...

É um elemento essencial na luta do nosso povo hoje em dia na articulação entre a população indígena, camponesa e os setores urbanos organizados. Sem a reforma agrária não pode haver mudança neste país, porque o modelo econômico ainda tem um grande impacto do agronegócio. A produção de gado, a produção de grãos, os bancos e as financeiras que se instalam na cidades, mas fundamentalmente para articular a produção agrária, os silos, os transportes, os portos, tudo isso está relacionado com a atividade econômica que se desenvolve no campo. Então, é central que os setores urbanos, os operários, os estudantes, incluam esta reivindicação em sua pauta. Quando se convoca uma greve geral com destaque para a mudança desta estrutura agrária injusta, isso demonstra que há consciência.

Como avalias a forma como os grandes conglomerados de comunicação abordaram o massacre de Curuguaty?

Há duas questões para um comportamento tão agressivo e cruel por parte deles. O primeiro é que querem castigar, mandar presos por 25, 30 anos, esses companheiros. Se não conseguem isso, se eles saem livres, vai se demonstrar que estas terras não são propriedade privada, são propriedade do Estado. E que são tierras mal habidas (ilícitas), que é como chamamos as terras que estão em mãos de proprietários privados, mas que anteriormente, há 20, 30 anos, eram propriedade pública, do Estado. Terras que pertenciam às comunidades e que foram tomadas durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), através da violência e dos abusos do Exército, da polícia e de jagunços.

De quanta terra estamos falando?

Comprovadamente foram oito milhões, mas há instituições que dizem que são dez milhões, 25% do território nacional foi arrancado violentamente dos seus legítimos donos. Isso ocorreu nas décadas de 60 e 70, fundamentalmente. Foi algo totalmente ilegal, uma vez que a lei é clara: os sujeitos da reforma agrária são os camponeses e a população indígena, são eles que devem receber terras do Estado.

Em vez disso ficaram nas mãos dos apaniguados de Stroessner.

Exato. São estas tierras mal habidas que estão na base do conflito de Curuguaty.  Elas pertenciam anteriormente a um proprietário estrangeiro, o Estado paraguaio recuperou estas terras que pertenciam à Marinha, e por isso se chama Marina Kue. Mas pouco a pouco a família Riquelme (Blas Riquelme foi um senador do Partido Colorado, de Stroessner), com o apoio de algumas instituições estatais, foi se apropriando. Definitivamente Marina Kue é uma terra pública reivindicada por um proprietário particular, é terra grilada. A primeira questão então é esta: se os companheiros saírem livres e se fica claro que é uma terra pública, o que entrará em pauta são os 10 milhões de hectares de terras públicas, será preciso esclarecer porque foram parar nas mãos do latifúndio. Este é um ponto.


Outra questão fundamental é que foi com o massacre de Curuguaty que se montou o golpe de Estado e o assalto das multinacionais ao poder político. Elas já tinham poder econômico com as grandes plantações, o gado, a máfia do narcotráfico. Desde muito tempo iam controlando todo o sistema educativo, introduzindo conceitos neoliberais, se apropriando das universidades. Hoje já contam com 80 universidades privadas. Assim tomaram o aparato ideológico e, finalmente, com o massacre de Curuguaty, limpam o caminho para Carter ser o presidente da República e para que as multinacionais tomem o poder político. Assim completam o processo. É isso o que está em jogo com a luta pela libertação dos companheiros. Se eles saem livres se desmonta a causa fundamental que está por detrás do triunfo de Cartes, que é o triunfo das multinacionais em nosso país.

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