(Foto: Lula Marques) |
Argentina: vingança contra a mídia independente
O fim do programa 678 é um sinal duro sobre a posição do novo governo contra o modelo de jornalismo alheio às pressões dos grandes agentes econômicos.
Para fazer uma metáfora com o Brasil, é como se um programa se ocupasse diariamente de desconstruir as inverdades apresentadas por William Bonner no Jornal Nacional, com uma equipe de produção muito bem organizada, transmitindo em horário nobre.
Por Darío Pignotti - reproduzido do portal Carta Maior, de 11/12/2015 (o título principal é deste blog)
Restaurar o latifúndio midiático: essa parece ser uma das prioridades da política de choque que a nova administração conservadora aplicará na Argentina nos próximos 100 dias, junto com outras medidas regressivas em termos políticos, econômicos e judiciários.
Um dos primeiros anúncios do governo, inclusive antes da posse de Mauricio Macri – ocorrida nesta quinta-feira, 10 de dezembro – foi acabar com o programa 678, transmitido pelo canal de televisão estatal TV Pública no horário principal da noite competindo com os principais noticiários privados.
Um dia depois de vencer as eleições, Macri adiantou que “o programa não vai continuar, nem 678 nem 876”, fazendo um trocadilho que exibiu seu duvidoso senso de humor.
Com uma audiência respeitável, mas sem chegar a ser massivo, o programa 678 se ocupou de desmascarar o relato falso dos grandes meios de informação, apelando a um estilo de denúncia sem concessões.
“Temos posição, não vamos enganar o telespectador com o mito da objetividade jornalística” disse um dos comentaristas que criticava todos os dias a agenda midiática e política.
Os comentaristas de 678 se permitiam ousadias que nunca antes se havia visto – ao menos não com tanta valentia – na televisão aberta. Se atreveu a desmontar peça por peça as notícias plantadas pelos grupos econômicos nos jornais e canais de televisão privados, e demonstrar como esses meios recebiam compensações pelo que diziam.
Em 678, se produziram reportagens especiais sobre a relação do Clarín com a ditadura militar e informes sobre os principais executivos desse oligopólio, ao que ninguém havia desafiado com tanta claridade.
Houve programas com informes sobre as reuniões da Embaixada dos Estados Unidos com dirigentes opositores e sobre os pactos estabelecidos entre os fundos abutres – que promovem uma guerra financeira contra a Argentina – e seus lobistas na Argentina, para causar instabilidade econômica.
Entre os assuntos mais repetidos, e que construíram a identidade do programa, foi por um raio-X permanente sobre os informativos do Canal 13 – sinal aberto – e do TN – Todo Noticias, canal de notícias a cabo –, ambos pertencentes ao Grupo Clarín.
Para fazer uma metáfora com o Brasil, é como se um programa se ocupasse diariamente de desconstruir as inverdades apresentadas por William Bonner no Jornal Nacional, com uma equipe de produção muito bem organizada, transmitindo em horário nobre – e com reportagens sobre temas internacionais, como o emitido este ano sobre a cumplicidade entre o semanário brasileiro Veja e o diário Clarín para semear e amplificar notícias falsas a respeito das relações entre a Argentina, a Venezuela e o Irã, a partir de fontes não reveladas, que possivelmente seriam inventadas.
Direto e mordaz, o 678 pecou às vezes como panfleto kirchnerista, e em ocasiões exagerou com o tom didático, mas nunca foi complacente.
Mercado versus direito de informação
Macri assumiu seu mandato nesta quinta-feira prometendo inaugurar uma nova era política, na que imagina que poderá enterrar as conquistas dos doze anos de governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015).
Com o propósito de erradicar o “populismo estatista”, ele designou a ex-CEOs de corporações privadas para cargos vitais, como a presidência da petroleira YPF, reestatizada na década passada.
Sua ambição é ser um símbolo do fim de uma época na América do Sul. Para isso, conta com a aprovação das empresas de notícias da Argentina, do Brasil e de toda a região, como ficou demonstrado na cobertura elogiosa que se viu em sua visita à sede da FIESP, em São Paulo, onde foi recebido como um redentor.
Macri é um homem perspicaz, que sabe se conduzir entre os meios de comunicação, e que aprendeu a se relacionar com as emoções populares em seus anos como presidente do vitorioso clube Boca Juniors.
Apesar de propor a reconciliação nacional e ter uma imagem de empresário zen, Macri não parece estar à vontade com o jornalismo intransigente, como o de 678 ou do diário Página/12, que publicou investigações sobre seus acordos com ex-agentes da ditadura militar.
O fim do programa 678 é um sinal duro sobre a posição do novo governo contra o modelo de jornalismo alheio às pressões dos grandes agentes econômicos locais e multinacionais.
Vamos a um exemplo imediato: imaginemos a cobertura severa que daria o programa 678 aos iminentes acordos que serão assinados entre a nova administração e os fundos abutres, que exigem taxas de juros exorbitantes.
E não somente isso. Se 678 não fosse tirado do ar, certamente seriam produzidas reportagens sobre a segura complacência dos grandes meios com o eventual acordo com os barões do mercado financeiro global.
Vingança
O fim do programa 678, iniciado em 2009, é somente a ponta do iceberg do que será a desconstrução da estrutura de meios públicos, fortalecida a partir da entrada em vigor da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – mais conhecida como Ley de Medios –, promulgada precisamente em outubro de 2009.
A política de desestatização comunicacional do governo Macri será completada com o arquivamento da Ley de Medios, que exige o desmembramento do tentacular sistema de propriedades do Grupo Clarín.
Paralelamente, eufóricos com a restauração conservadora, grupos de hackers lançaram ataques contra a imprensa questionadora, começando pelo diário Página/12, cuja edição eletrônica ficou fora do ar durante dias.
Os cães de guarda do poder iniciaram uma guerra contra o jornalismo que informa.
É ingênuo supor que esses ataques não estão vinculados ao clima de revanche alimentado pela ultradireita argentina.
Desde sua fundação, em 1987, o diário Página/12 teve como linha editorial a defesa dos direitos humanos e, junto com ela, dos juízos contra os genocidas que atuaram durante a ditadura, que deixou 30 mil mortos e desaparecidos.
Entre os redatores do nosso jornal estão os jornalistas investigativos que revelaram a trama do genocídio do Estado, cujos culpados foram processados e presos na última década.
A poucos dias da vitória de Mauricio Macri – a quem não se pode acusar de cumplicidade com estas intimidações –, começaram a se observar sinais de vingança: houve pixações contra os defensores dos direitos humanos, e o conservador diário La Nación, primo-irmão do brasileiro Estado de São Paulo e conhecido pela sua linha conservadora, publicou um editorial exigindo a libertação dos genocidas. Um texto que mereceu o repúdio dos próprios jornalistas desse matutino, num fato sem precedentes na história argentina.
* Correspondente e doutor em comunicação pela USP.
Um dos primeiros anúncios do governo, inclusive antes da posse de Mauricio Macri – ocorrida nesta quinta-feira, 10 de dezembro – foi acabar com o programa 678, transmitido pelo canal de televisão estatal TV Pública no horário principal da noite competindo com os principais noticiários privados.
Um dia depois de vencer as eleições, Macri adiantou que “o programa não vai continuar, nem 678 nem 876”, fazendo um trocadilho que exibiu seu duvidoso senso de humor.
Com uma audiência respeitável, mas sem chegar a ser massivo, o programa 678 se ocupou de desmascarar o relato falso dos grandes meios de informação, apelando a um estilo de denúncia sem concessões.
“Temos posição, não vamos enganar o telespectador com o mito da objetividade jornalística” disse um dos comentaristas que criticava todos os dias a agenda midiática e política.
Os comentaristas de 678 se permitiam ousadias que nunca antes se havia visto – ao menos não com tanta valentia – na televisão aberta. Se atreveu a desmontar peça por peça as notícias plantadas pelos grupos econômicos nos jornais e canais de televisão privados, e demonstrar como esses meios recebiam compensações pelo que diziam.
Em 678, se produziram reportagens especiais sobre a relação do Clarín com a ditadura militar e informes sobre os principais executivos desse oligopólio, ao que ninguém havia desafiado com tanta claridade.
Houve programas com informes sobre as reuniões da Embaixada dos Estados Unidos com dirigentes opositores e sobre os pactos estabelecidos entre os fundos abutres – que promovem uma guerra financeira contra a Argentina – e seus lobistas na Argentina, para causar instabilidade econômica.
Entre os assuntos mais repetidos, e que construíram a identidade do programa, foi por um raio-X permanente sobre os informativos do Canal 13 – sinal aberto – e do TN – Todo Noticias, canal de notícias a cabo –, ambos pertencentes ao Grupo Clarín.
Para fazer uma metáfora com o Brasil, é como se um programa se ocupasse diariamente de desconstruir as inverdades apresentadas por William Bonner no Jornal Nacional, com uma equipe de produção muito bem organizada, transmitindo em horário nobre – e com reportagens sobre temas internacionais, como o emitido este ano sobre a cumplicidade entre o semanário brasileiro Veja e o diário Clarín para semear e amplificar notícias falsas a respeito das relações entre a Argentina, a Venezuela e o Irã, a partir de fontes não reveladas, que possivelmente seriam inventadas.
Direto e mordaz, o 678 pecou às vezes como panfleto kirchnerista, e em ocasiões exagerou com o tom didático, mas nunca foi complacente.
Mercado versus direito de informação
Macri assumiu seu mandato nesta quinta-feira prometendo inaugurar uma nova era política, na que imagina que poderá enterrar as conquistas dos doze anos de governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015).
Com o propósito de erradicar o “populismo estatista”, ele designou a ex-CEOs de corporações privadas para cargos vitais, como a presidência da petroleira YPF, reestatizada na década passada.
Sua ambição é ser um símbolo do fim de uma época na América do Sul. Para isso, conta com a aprovação das empresas de notícias da Argentina, do Brasil e de toda a região, como ficou demonstrado na cobertura elogiosa que se viu em sua visita à sede da FIESP, em São Paulo, onde foi recebido como um redentor.
Macri é um homem perspicaz, que sabe se conduzir entre os meios de comunicação, e que aprendeu a se relacionar com as emoções populares em seus anos como presidente do vitorioso clube Boca Juniors.
Apesar de propor a reconciliação nacional e ter uma imagem de empresário zen, Macri não parece estar à vontade com o jornalismo intransigente, como o de 678 ou do diário Página/12, que publicou investigações sobre seus acordos com ex-agentes da ditadura militar.
O fim do programa 678 é um sinal duro sobre a posição do novo governo contra o modelo de jornalismo alheio às pressões dos grandes agentes econômicos locais e multinacionais.
Vamos a um exemplo imediato: imaginemos a cobertura severa que daria o programa 678 aos iminentes acordos que serão assinados entre a nova administração e os fundos abutres, que exigem taxas de juros exorbitantes.
E não somente isso. Se 678 não fosse tirado do ar, certamente seriam produzidas reportagens sobre a segura complacência dos grandes meios com o eventual acordo com os barões do mercado financeiro global.
Vingança
O fim do programa 678, iniciado em 2009, é somente a ponta do iceberg do que será a desconstrução da estrutura de meios públicos, fortalecida a partir da entrada em vigor da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual – mais conhecida como Ley de Medios –, promulgada precisamente em outubro de 2009.
A política de desestatização comunicacional do governo Macri será completada com o arquivamento da Ley de Medios, que exige o desmembramento do tentacular sistema de propriedades do Grupo Clarín.
Paralelamente, eufóricos com a restauração conservadora, grupos de hackers lançaram ataques contra a imprensa questionadora, começando pelo diário Página/12, cuja edição eletrônica ficou fora do ar durante dias.
Os cães de guarda do poder iniciaram uma guerra contra o jornalismo que informa.
É ingênuo supor que esses ataques não estão vinculados ao clima de revanche alimentado pela ultradireita argentina.
Desde sua fundação, em 1987, o diário Página/12 teve como linha editorial a defesa dos direitos humanos e, junto com ela, dos juízos contra os genocidas que atuaram durante a ditadura, que deixou 30 mil mortos e desaparecidos.
Entre os redatores do nosso jornal estão os jornalistas investigativos que revelaram a trama do genocídio do Estado, cujos culpados foram processados e presos na última década.
A poucos dias da vitória de Mauricio Macri – a quem não se pode acusar de cumplicidade com estas intimidações –, começaram a se observar sinais de vingança: houve pixações contra os defensores dos direitos humanos, e o conservador diário La Nación, primo-irmão do brasileiro Estado de São Paulo e conhecido pela sua linha conservadora, publicou um editorial exigindo a libertação dos genocidas. Um texto que mereceu o repúdio dos próprios jornalistas desse matutino, num fato sem precedentes na história argentina.
* Correspondente e doutor em comunicação pela USP.
Tradução: Victor Farinelli
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