WAGNER IGLECIAS: NÃO SÃO ATENTADOS COMO OS DE PARIS, CEIFANDO VIDAS DE INOCENTES, OS QUE OCORREM NO AFEGANISTÃO, PAQUISTÃO, IRAQUE, SÍRIA, IÊMEN, LÍBIA?
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(Foto: Viomundo) |
Enquanto bombas e tiros ocorrem em algum lugar,
ceifando vidas inocentes, seguimos na marcha batida de um tipo de civilização
predatória, belicista, individualista e alienada, no qual a vida humana parece
ser menos importante que o lucro, a solidariedade menos importante que a
ganância e a natureza menos importante que a riqueza material de uma pequena
parcela da Humanidade.
CIVILIZAÇÃO
FÓSSIL
Por Wagner Iglecias, especial para o
Viomundo – reproduzido do blog Viomundo – o que você não vê na mídia, de
17/11/2015
Neste
domingo, durante discurso feito na reunião dos BRICS no G-20, na Turquia, a
presidente Dilma Rousseff citou o Estado Islâmico em referência aos atentados
em Paris e disse que é urgente “uma ação conjunta de toda a comunidade
internacional no combate sem tréguas ao terrorismo”.
Vindo de
alguém na posição dela não se podia esperar algo muito diferente disso. Mas
trata-se de uma declaração protocolar, oca, formal, dado que combater o
terrorismo é combater a consequência, e não as causas do problema. Visões como
essa só darão mais combustível ao belicismo crescente, à xenofobia contra o
Islã e tornarão cada vez mais difícil a construção da paz.
Muçulmanos
não são seres irracionais e sua fé religiosa não está além ou aquém das outras
crenças ocidentais, como o Cristianismo e o Judaísmo. Grande parte do avanço
científico e tecnológico europeu ao longo de séculos é fruto do convívio com os
povos islâmicos, é bom que se diga. E tampouco estamos vivendo um “Choque de
Civilizações” entre o Islã e Ocidente, como sugeriu um dia o pensador
conservador estado-unidense Samuel Huntington. Por outro lado é óbvio que os
atentados terroristas na França, provavelmente perpetrados pelo Estado
Islâmico, nos soam horripilantes. E são mesmo.
Mas fica
a pergunta: não são atentados como os da capital francesa, ceifando a vida de
tantos inocentes, que ocorrem quase que semanalmente há mais de uma década se
considerarmos o conjunto de países (ou ex-países) como Afeganistão, Paquistão,
Iraque, Síria, Iêmen, Líbia, Somália, Quênia, Nigéria e outros, dos quais
muitos de nós aqui, no Extremo Ocidente, na longínqua periferia do Império, nem
ficamos sabendo?
Talvez o
que mais nos apavore, além das terríveis imagens vindas da tragédia de Paris,
uma das capitais culturais de nosso tempo, é imaginar a hipótese de que esta
rotina macabra não seja mais uma exclusividade de países pobres e distantes, e
que possa a partir de agora ser parte do cotidiano das sociedades mais ricas do
mundo, exatamente aquelas nas quais tantos de nós se espelham.
Logicamente
seria muita pretensão deste que vos escreve, ou de qualquer outra pessoa,
tentar responder à questão sobre quais são as causas do terrorismo contemporâneo.
Afinal trata-se de um tema demasiadamente complexo, que carece ser
analisado a partir de múltiplos aspectos. Mas tenho a impressão de que a
instabilidade política instigada pelo Império e seus prepostos europeus no
Oriente Médio e no Magreb na última década e meia é a principal razão para este
novo ciclo de instabilidade global que se forma a partir daquela região do
mundo.
Sim, a
Líbia de Muamar Gaddafi, o Iraque de Sadam Hussein ou a Síria de Hafez al-Assad
(pai de Bashar al-Assad) eram ditaduras. Houve neste países presos políticos e
perseguições a opositores. Mas é certo que havia também alguma estabilidade
institucional e não ocorria o banho de sangue, na escala atual, como este
promovido na região desde a primeira Guerra do Golfo e as posteriores incursões
ocidentais naquela parte do mundo.
Organizações
internacionais estimam que no Iraque teriam sido assassinadas apenas entre 2003
e 2006 entre 600 mil e 1 milhão de pessoas. Durante os seis primeiros meses de
guerra civil para por fim ao governo de Gaddafi na Líbia, em 2011, estima-se
que entre 30 mil e 50 mil pessoas tenham sido mortas. Na atual guerra para
derrubar o governo de Bashar al-Assad na Síria estima-se que 250 mil pessoas já
tenham perdido a vida, 7 milhões tenham se deslocado forçadamente dentro do
território sírio e outros 4 milhões tenham saído ou tentado sair do país por
conta da violência.
As
incursões feitas pelo Ocidente contra governos da região são, ao menos ao nível
do discurso, para levar àqueles povos a liberdade e a democracia. Trata-se,
curiosamente, de países não alinhados aos governos dos EUA e da Europa e
situados sob ricas reservas de petróleo, gás natural e outros recursos fósseis
fundamentais ao modelo de desenvolvimento ocidental. Modelo de desenvolvimento
que faz com que os estado-unidenses, que constituem apenas 5% da população do
planeta, sejam responsáveis por 14% da emissão global de gases de efeito estufa
e consumam 25% da energia mundial. Modelo de desenvolvimento baseado em
trabalho excessivo, consumo exacerbado e desperdício. Modelo de desenvolvimento
que formou uma sociedade disciplinada e individualista, na qual parcela
significativa da população vive movida a ansiolíticos, antidepressivos e outras
drogas. Modelo de desenvolvimento que irá buscar aonde for necessário, em
qualquer lugar do mundo, os recursos para a sua alimentação e a sua
continuidade. Modelo de desenvolvimento que se orgulha de suas garantias e
liberdades individuais, de seu protagonismo, de sua liderança e de sua
democracia.
Mas
modelo de desenvolvimento que, em verdade, resulta numa civilização fóssil,
calcada numa sociedade que para dar sentido à sua forma de viver depende da
exploração insana e permanente de recursos energéticos esgotáveis e poluidores,
aonde quer que eles estejam e ao custo que custarem.
Buscar as
razões para as ações terroristas é muito difícil. Mas os atentados não são
causa, e sim consequência. Fato é que enquanto bombas e tiros ocorrem em algum
lugar, ceifando vidas inocentes, seguimos na marcha batida de um tipo de
civilização predatória, belicista, individualista e alienada, no qual a vida
humana parece ser menos importante que o lucro, a solidariedade menos
importante que a ganância e a natureza menos importante que a riqueza material
de uma pequena parcela da Humanidade.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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