RENAN ANTUNES (AGÊNCIA PÚBLICA): OS JAGUNÇOS CERCAM OS GUARANIS

Cacique Loretito e família na cova do guerreiro Simeão morto no ataque dos fazendeiros (Foto: Cris Loff/Pública)
Quem está matando os índios no Mato Grosso do Sul? Por que essas mortes se repetem? Para responder a essas perguntas a Pública escalou um repórter experiente que conta aqui suas descobertas no mundo ameaçado dos guarani-kaiowá.

Por Renan Antunes de Oliveira – da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, de 25/11/2015

No final de outubro, eu estava internado num hospital em Porto Alegre quando recebi um whatsApp: precisa-se de repórter para viajar para o Mato Grosso do Sul (MS) a fim de investigar crimes no mundo guarani – foram 138 mortes em 2014, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A mensagem citava os crimes mais recentes: alguém furou a barriga do cacique Elpídio, de Potrero Guasu, em setembro; jagunços mataram o guerreiro Simeão, em agosto, em Marangatu; uma criança índia sumiu durante uma escaramuça com fazendeiros, em junho, na área indígena Kurusu Amba – nesse caso, a denúncia era do Ministério Público Federal (MPF).

Notem: era só índio tomando chumbo.

Dei uma busca no Google por “morte do índio Simeão”. Nada nos grandes portais nem nos jornalões – até aí normal.

Vapt-vupt desconectei o soro, suspendi um exame da artéria hipogástrica e reagendei o nefrologista para novembro: a viagem era urgente porque nunca antes na história daqueles grotões foi tão quente o conflito entre índios guaranis e fazendeiros brancos.

Aluguei um carro, contratei a fotógrafa Cris Loff e toquei para as quebradas onde os ataques ocorreram – reportagem assim tem um pouco daqueles seriados do CSI, e seria bom a gente encontrar as provas na cena do crime.

Já estive no MS várias vezes. Esperava rever os mesmos atores: fazendeiros e seus pistoleiros na ofensiva, índios no modo de sobrevivência.

Desde 2013 os fazendeiros impedem na marra que a Funai demarque as áreas indígenas, usando pistoleiros nos grotões, parlamentares no Congresso Nacional e a conveniente lerdeza do Judiciário.

Os pistoleiros são os que mais incomodam, mesmo sendo apenas a ponta do iceberg: eles fazem o serviço sujo aqui e ali, botam os funcionários da Funai para correr. Vivem protegidos nas fazendas dos mandantes, com a certeza da impunidade.

No front político, os parlamentares da chamada “bancada ruralista” conseguiram aprovar na Comissão Especial da Câmara Federal a PEC 215, uma proposta de emenda à Constituição que, se aprovada no plenário do Congresso, roubará dos índios direitos que já estão no livrinho.

Da lentidão do Judiciário eis um exemplo atual: a disputada área Marangatu, onde se deu o assassinato de Simeão, foi entregue aos indígenas em 1999, quando ele tinha apenas 8 anos. Mas os fazendeiros recorreram à Justiça e o caso subiu ao STF, de onde nunca mais saiu – Simeão foi morto aos 24 em terra guarani sub judice…

A rigor, os índios têm do seu lado apenas o Cimi. É verdade que existem alguns burocratas bem-intencionados em repartições do governo Dilma, mas estes estão quase imobilizados para não melindrar o governador Reinaldo Azambuja (PSDB).

O impasse: na questão indígena, o governador influencia parlamentares da bancada federal no Congresso, até mesmo quando adversários. Dilma fica de mãos atadas porque não é boa política afrontar os representantes do eleitorado local, ainda mais quando se trata de uma causa tremendamente impopular – a defesa da minoria índia.

Se você pensou na Funai como super-heroína em defesa dos guaranis, pensou errado. Ela é só um órgão do Ministério da Justiça (MJ), logo passível de influência política.

Para entender a big picture, eis uma denúncia feita pelo procurador do MPF para assuntos indígenas no pedaço, Ricardo Ardenghi. Em junho, ele pediu ao MJ apoio da Força Nacional de Segurança (FNS) para proteger a comunidade Kurusu Amba, sob ataque de fazendeiros e seus jagunços.

Era uma urgência urgentíssima.

A FNS não foi. Assim de simples.

O procurador requisitou a Polícia Federal, mas o delegado responsável pela área também não quis ir.

As duas forças não foram por uma decisão política: PF e FNS são órgãos do MJ.

O procurador pediu proteção de agentes da Polícia Civil do MS – um baita risco – e foi ele mesmo se interpor entre fazendeiros armados e índios indefesos.

Foi tarde demais.

Ardenghi disse: “Quando cheguei lá [na zona do conflito] havia alguns pontos de incêndio, onde foi possível identificar utensílios de cozinha, cobertas, brinquedos e alimentos destruídos pelo fogo. Expulsos [pelos fazendeiros e seus jagunços], os indígenas se encontravam na estrada de acesso, a 2 km do local do conflito”.

Na refrega, uma criança índia sumiu. Assim, desapareceu no ar. Agora, imagine o auê se uma criança sumisse num domingo no Parque do Ibirapuera…

E mais: índio já vive num miserê total, mas os fazendeiros não tiveram dó. Queimaram roupas, comida e até os brinquedos da tribo escorraçada.


O procurador concluiu que “o Ministério da Justiça agiu com grave omissão, desrespeitando os direitos constitucionais dos indígenas”. 

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