(Foto: Internet) |
(VÍDEO) Bento
Rodrigues: povoado soterrado pela Samarco sintetizava um modo de vida tão
esquecido pela imprensa quanto os impactos sociais e ambientais do mundo
corporativo.
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho) – reproduzido do seu blog, de
09/11/2015
Por trás
da lama da Samarco afirma-se o gosto amargo de um jornalismo subserviente, a
serviço do mercado. Dezenas de pessoas estão desaparecidas em Mariana (MG).
Entre elas, crianças. O vídeo
acima mostra como era o cotidiano de um povoado destruído. Mas
a maior tragédia socioambiental brasileira do século XXI já começa a ser
soterrada pelos jornais, após uma cobertura protocolar. Da lama à ordem:
ignoram-se os conflitos, minimizam-se as contradições e se assimilam os
discursos cínicos de executivos e de membros do governo. Com a clássica
blindagem dos sócios da empresa.
OS DONOS
Primeiro
enumeremos os donos. Já se sabe que 50% da Samarco pertence à Vale, a Vale que
tirou o Rio Doce de seu nome e nele despejou lama tóxica.
A outra metade pertence à anglo-australiana BHP Billiton, uma fusão da
australiana Broken Hill Proprietary Company com a inglesa (radicada na África
do Sul) Billiton, atuante nas veias abertas do Chile, Colômbia e Peru (onde
tomou uma multa ambiental de US$ 77 mil após contaminação
por cobre), no Canadá, Reino Unido e nos Estados Unidos, na Argélia,
no Paquistão e em Trinidad & Tobago. Já protagonizou na Papua Nova Guiné
uma contaminação fluvial histórica. As maiores mineradoras
do mundo.
E a quem
pertence a Vale? Esse capítulo costuma ser omitido, quando se fala de impactos
sociais e ambientais. A empresa é controlada pela Valepar, com 53,9% do capital votante (1/3 do capital total).
Com 5,3% para o governo federal, 5,3% para o BNDESpar, 14,8% para investidores
brasileiros, 16,9% na Bovespa e 46,2% de investidores estrangeiros (este
percentual cai para 33,9% no caso do capital total). De qualquer forma já temos
que a Samarco – com a metade anglo-australiana e com esses investidores
estrangeiros da Vale – tem mais da metade de suas ações nas mãos de
estrangeiros.
E quem
manda na Valepar, que controla a Vale? 1) Fundos de investimentos administrados
pela Previ, com 49% das ações; 2) A Bradespar, do Bradesco, com 17,4%; 3) A
multinacional Mitsui, um dos maiores conglomerados japoneses, de bancos à
petroquímica, com tentáculos na Sony, Yamaha, Toyota, com 15%; 4) O BNDESpar,
com 9,5%. (Ignoremos os 0,03% da Elétron, do Opportunity e seu onipresente
Daniel Dantas. E registremos que, com a Mitsui, aumenta ainda mias a
participação de estrangeiros na Samarco).
BNDES?
Previ? Mas por que, então, a imprensa acostumada a fustigar o governo federal
não fiscaliza com mais atenção a Vale, símbolo da privatização a preço de
banana? Simplesmente porque não tem o saudável hábito – a imprensa brasileira –
de fiscalizar corporações. E porque essas instituições não estão sozinhas.
Porque tem a Mitsui, o Bradesco – o bilionário Bradesco. Com um governador
petista dando entrevista coletiva na sede da Samarco. (O capitalismo não é para amadores).
Não há um acompanhamento sistemático do custo social e ambiental das aventuras
plutocratas, sob governos de siglas diversas. Pelo contrário: o que há é um
marketing despudorado.
EXECUTANDO ADVÉRBIOS
Essa rede
de donos da Samarco manifesta-se por meio de um jovem executivo, Ricardo
Vescovi. Os gerentes de crise da empresa tiraram o site do ar (sabe-se lá com quais
informações) e divulgaram esse vídeo do presidente no Facebook. Com seu milagre
de multiplicação de advérbios insossos e pronomes totalizantes, insensíveis aos
dramas dos mineiros. “Lamentavelmente”, “imediatamente”, “absolutamente todos
os esforços” em relação ao “ocorrido”, “todas as ações”, “todos os esforços”,
“igualmente não medindo esforços”, “todo apoio”, “toda solidariedade”,
“lamentamos profundamente” o “acontecido”.
Os mais
desavisados poderão até ficar com dó do pobre coitado. Ainda mais após as
declarações do governo mineiro de que a Samarco foi “vítima” do rompimento da barragem. E
após jornalistas irresponsáveis replicarem notícias sobre “tremores de terra”
que acontecem todos os dias. Muito embora a empresa já soubesse, desde 2013,
que a barragem – como outras pelo país que ainda não desabaram – estava condenada. E que essa não tenha sido a primeira tragédia em Minas
Gerais. São esses mesmos jornais que não se furtam a cobrir, de forma
reverente, o que as empresas chamam de “sustentabilidade”, “responsabilidade
social e ambiental”.
Alguém poderá
argumentar que um jornal da grande imprensa, o Estadão, divulgou notícia sobre o laudo de 2013 que mostrava os
problemas estruturais na barragem. Sim. Em 2015. Mas cabe lembrar que uma ou
outra notícia isolada após uma tragédia está longe de caracterizar a cobertura
crítica de um setor econômico. Se o tema não se mantém na manchete (passou
longe disso, neste domingo, nos principais jornais do país), em artigos
recorrentes, editoriais sistemáticos, não há o agendamento político efetivo – e
sim o convite ao esquecimento. E à impunidade. (Quem vai fazer uma Operação
Lava Lama?)
IMPRENSA DOS VENCEDORES
Essa
mesma imprensa se esquece também de contar ao leitor que existe um choque entre
modelos de apropriação do território e dos recursos naturais. O vídeo da TV
Cultura sobre a comunidade destruída mostra – ainda que com uma abordagem que
privilegia o exótico – um modo de vida bem diferente, onde as moradoras vão na
casa das outras, plantam-se pimentas no quintal e se produz geleia,
coletivamente, em uma associação. Uma lógica econômica muito diversa da
predação extrativista – e esgotável – protagonizada pela Samarco, esse nome
amorfo emprestado a dois expoentes do capitalismo mundial. Quem disse que há
consenso?
Existem
movimentos sociais específicos de atingidos pela mineração, ou atingidos pelas
barragens. Até mesmo de atingidos pela Vale. Por que não se dá voz a essas
pessoas? Se nem após os desastres isso acontece, o que se dirá do dia a
dia? Porque os cadernos e até revistas especializadas são de “negócios”,
como se esses negócios pudessem pairar (numa sociedade democrática) acima dos
interesses dos cidadãos. Por que os calam? Por que essa censura? Por que a
destruição de uma comunidade inteira e de um ecossistema não comovem? Porque
esse jornalismo é situacionista, economicamente situacionista. Torce para os
vencedores.
Os mais
eugenistas nem se constrangem em dizer que aquelas populações não deviam estar
ali – deviam abrir alas para a distinta mineradora. Como se fosse um bem
infinito para o país o esgotamento de seus recursos minerais. Não se questiona
o modelo e nem suas conexões com outros temas: a falta d’água, o crescimento e
a falta de infraestrutura das periferias urbanas, inchadas também pela expulsão
das populações tradicionais. Faz-se tudo menos um jornalismo sistêmico, que
consiga olhar para temas simultâneos, para tendências econômicas e para o
clima, para a desigualdade e os riscos ambientais. Com nome aos bois (ou aos
caranguejos), o nome dos beneficiários. Quem ganha com isso?
NATURALIZAÇÃO
De um
modo geral o efeito obtido no caso de Mariana é o de naturalização de uma
matança e de um crime ambiental histórico. Como não houve chuvas, inventa-se um
terremoto. A morte horrível de moradores e a destruição de um povoado por uma
empresa ganham, no máximo, uma cobertura similar à das tragédias em São Luís do
Paraitinga ou Petrópolis (fruto também da especulação imobiliária), ignorando a
cadeia de sócios, os interesses políticos em torno das mineradoras ou o
risco estrutural que esse tipo de exploração impõe ao ambiente, aos
trabalhadores e vizinhos, bola pra frente que em janeiro teremos “outras
enchentes”. Como se fizesse parte do sistema ser soterrado por uma lama tóxica enquanto se planta alface.
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