(Foto: Viomundo) |
“O fascismo (...) é um “patrimônio” de teorias,
valores, princípios, estratégias e práticas à disposição dos governantes ou de
lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser fabricadas pelos detentores
do poder político ou econômico, em especial através dos meios de comunicação de
massa)...”
Por Rubens Casara, no Justificando – reproduzido
do blog Viomundo – o que você não vê na mídia, de 28/10/2015
Conversar
com um fascista: um desafio
Em
Adorno, a ignorância, a ausência de reflexão, a identificação de inimigos
imaginários, a transformação dos acusadores em julgadores (e vice-versa) e a
manipulação do discurso religioso são, dentre outros sintomas, apontados como
típicos do pensamento autoritário.
Pensem,
agora, na naturalização com que direitos fundamentais são afastados e violados
no Brasil, na crença no uso da força (e do sistema penal) para resolver os mais
variados problemas sociais, na demonização de um partido político (que, apesar
de vários erros, e ao contrário de outros partidos apontados como
“democráticos”, não aderiu aos projetos a seguir descritos), no prestígio
novamente atribuído aos “juízes-inquisidores”, nos recentes linchamentos
(inclusive virtuais), no número tanto de pessoas mortas por ação da polícia
quanto de policiais mortos e nos projetos legislativos que:
a)
relativizam a presunção de inocência;
b)
ampliam as hipóteses de “prisão em flagrante” em evidente violação aos limites
semânticos da palavra “flagrante” inscrita no texto Constitucional como limite
ao exercício do poder;
c)
criminalizam os movimentos sociais com a desculpa de prevenir “atos de
terrorismo”;
d)
impedem o fornecimento de “pílulas do dia seguinte” para profilaxia de
gravidez decorrente de violência sexual e criminalizam médicos que dão
informações para mulheres vítimas de violência sexual;
e)
eliminam o princípio constitucional da gratuidade na educação pública, dentre
outras aberrações jurídicas.
Conclusão?
Avança-se na escala do fascismo.
O
fascismo recebeu seu nome na Itália, mas Mussolini nunca esteve sozinho.
Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com a mesma receita que
unia voluntarismo, pouca reflexão e violência contra seus inimigos. Hoje,
parece que há consenso de que existe(m) fascismo(s) para além do fenômeno
italiano ou, ainda, que o fascismo é um amálgama de significantes, um “patrimônio”
de teorias, valores, princípios, estratégias e práticas à disposição dos
governantes ou de lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser fabricadas
pelos detentores do poder político ou econômico, em especial através dos meios
de comunicação de massa), que disseminam o ódio contra o que existe para
conquistar o poder e/ou impor suas concepções de mundo.
O
fascismo possui inegavelmente uma ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se
tudo (as diferenças, as qualidades dos opositores, as conquistas históricas, a
luta de classes, etc.), principalmente, o conhecimento e, em consequência, o
diálogo capaz de superar a ausência de saber.
Os
fascistas, como já foi dito, talvez não saibam o que querem, mas sabem bem
o que não suportam. Não suportam a democracia, entendida como concretização dos
direitos fundamentais de todos, como processo de educação para a liberdade e de
limites ao exercício do poder. Essa mistura de pouca reflexão (o fascismo,
nesse particular, aproxima-se dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à
ignorância) e recurso à força (como resposta preferencial para os mais variados
problemas sociais) produz reflexos em toda a sociedade.
As
práticas fascistas revelam uma desconfiança. O fascista desconfia do
conhecimento, tem ódio de quem demonstra saber algo que afronte ou se revele
capaz de abalar suas crenças. Ignorância e confusão pautam sua postura na
sociedade. O recurso a crenças irracionais ou anti-racionais, a criação de
inimigos imaginários (a transformação do “diferente” em inimigo), a confusão
entre acusação e julgamento (o acusador – aquele indivíduo que aponta o dedo e
atribui responsabilidade – que se transforma em juiz e o juiz que se torna
acusador – o inquisidor pós-moderno) são sintomas do fascismo que poderiam ser
superados se o sujeito estivesse aberto ao saber, ao diálogo que revela
diversos saberes.
Diante
dos riscos do fascismo, o desafio é confrontar o fascista com aquilo que para
ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição
filosófica atribuída a Sócrates. Talvez esse seja o objetivo do diálogo
proposto pela filósofa Marcia Tiburi em seu novo livro, que tive o prazer de
apresentar (o prefácio é do sempre excelente Jean Wyllys).
Em "Como
conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário
brasileiro" (Rio de janeiro: Saraiva, 2015), a autora resgata a
política como experiência de linguagem, sempre presente na vida em comum, e
investe nessa operação, que exige o encontro entre o “eu” e o “tu”, apresentada
como fundamental à construção democrática. De fato, a qualidade e a própria
existência da forma democrática dependem da abertura ao diálogo, da construção
de diálogos genuínos – que não se confundem com monólogos travestidos de
diálogos – em que a individualidade e os interesses de cada pessoa não
inviabilizam a construção de um projeto comum, de uma comunidade fundada na
reciprocidade e no respeito à alteridade.
Ao tratar
da personalidade autoritária, dos micro-fascismos do dia-a-dia, do consumismo
da linguagem, da transformação de pessoas em objetos, da plastificação das
relações, da idiotização de parcela da população, dentre outros fenômenos
perceptíveis na sociedade brasileira, Marcia Tiburi sugere uma mudança de
atitude do um-para-com-o-outro.
Nos
diversos ensaios deste livro, a autora conduz o leitor para um processo de
reflexão e descoberta dos valores democráticos, bem como desvela as
contradições, os preconceitos e as práticas que caracterizam os movimentos
autoritários em plena democracia formal.
Mas, não
é só.
Ao propor
que a experiência dialógica alcance também os fascistas, aqueles que se recusam
a perceber e aceitar o outro em sua totalidade, Marcia Tiburi exerce a arte de
resistir.
Dialogar
com um fascista, e sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito incapaz
de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de resistência.
Confrontar
o fascista, desvelar sua ignorância, fornecer informação/conhecimento, levar
esse interlocutor à contradição, desconstruindo suas certezas, forçando-o a
admitir que seu conhecimento é limitado, fazem parte do empreendimento
ético-político da autora, que faz neste livro uma aposta na potência do
diálogo e na difusão do conhecimento como antídoto à tradição autoritária que
condiciona o pensamento e a ação em terra brasilis.
O leitor,
ao final, perceberá que não só o objetivo foi alcançado como também que a
autora nos brindou com um texto delicioso, original, profundo sem ser
pretensioso. Mais do que recomendada a leitura.
Rubens
Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências
Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e
escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo
Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
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