O EFEITO FRANCISCO (DE DIREITA? DE ESQUERDA? LIBERAL? MARXISTA?) – POR WASHINGTON URANGA

(Foto: Página/12)
O cuidado das pessoas e seus direitos é o ponto que conecta todas as preocupações. E seu slogan político são os três T: teto, terra e trabalho.


Por Washington Uranga (jornalista uruguaio vivendo na Argentina) – no jornal argentino Página/12, edição impressa de hoje, dia 27

O papa Francisco está culminando hoje (dia 27) sua visita aos Estados Unidos participando de um ato no marco do Encontro Mundial das Famílias. Será um encontro eminentemente religioso depois de dias muito intensos que tiveram, tanto em Cuba como em território norte-americano, uma forte marca política. O fato de que Jorge Bergoglio tenha escolhido encerrar seu périplo com uma celebração de tom religioso, que ademais será a mais massiva de todas, também se deve ler como parte da estratégia do Pontífice. Na Filadélfia se dará o maior “banho de massas” (esperam-se mais de dois milhões de pessoas) e se referirá a questões claramente “pastorais”. Um duplo limite para aqueles que criticam seu perfil “político”, mas ao mesmo tempo uma nova manifestação de respaldo popular que o reafirma no seu papel de liderança. Um coroamento para um périplo exitoso que começou em Cuba e que culmina nos Estados Unidos depois de ter passado em Nova Iorque pela Assembleia das Nações Unidas.
Difícil de decifrar
Para muitos analistas, este Papa está se convertendo numa figura indecifrável em termos políticos e ideológicos clássicos. De direita? De esquerda? Liberal? Marxista? Dependendo do lugar em que se situe quem está fazendo a análise, cada um, mais de um e todos estes qualificativos valem para Francisco. E mais. Se alguém se põe a analisar sua história pessoal e seus pronunciamentos na Argentina sobre muitos dos mesmos temas que agora aborda (desde a diversidade sexual até seu posicionamento político), seguramente poderá ver contradições. Salvo num ponto: a defesa dos pobres que tem sido uma constante sempre, antes e agora. Os admiradores e defensores de Bergoglio sustentam que não há nem em suas manifestações nem em suas práticas nenhum tipo de diferenças ou contradições. Francisco, para eles, é um autêntico Bergoglio. Existem outros olhares.
O jornalista norte-americano Rush Limbaugh, habitual porta-voz da direita daquele país, sustentou sem pelos na língua que a exortação apostólica Evangelii gaudium (A alegria do Evangelho), documento papal difundido em 2013, é “puro marxismo”. O texto, muito mais “religioso” que a recente encíclica Laudato si (Louvado seja) sobre a questão ambiental, incluia no entanto uma dura crítica ao capitalismo selvagem. Stephen Moore, economista de The Heritage Foundation, disse em Washington que o Papa “se mostrrou muito cético com o capitalismo e o livre mercado e creio que isso é preocupante” e concordou que Francisco tem “claramente tendências marxistas”. George F. Will escreveu em The Washington Post que “com o zelo indiscriminado de um converso, (o Papa) abraça ideias impecavelmente da moda, demonstravelmente falsas e profundamente reacionárias”. E arrematou dizendo que suas propostas “arruinariam os pobres em cujo nome pretende falar”.
A esquerda
Parte da esquerda, sobretudo a de tradição marxista mais ortodoxa, continua suspeitando de Francisco. Não se decide a acreditar decididamente na sinceridade de suas propostas ainda que os temas da agenda e também muitas das posições coincidam com seus próprios postulados. Existe quase uma questão visceral de rechaço à Igreja Católica e à sua institucionalidade. E mais além do que diga, Bergoglio é o Papa do catolicismo, o qual se considera retrógrado, reacionário e aliado ao poder antipopular. Para os que assim o veem não bastam os “banhos de massas” nem o respaldo popular que provavelmente são vistos como uma expressão mais de “alienação” religiosa.
As manifestações de entusiasmo frente às posições do Papa expressadas pelo presidente Barack Obama e outros dirigentes norte-americanos operam a favor e contra, segundo os casos. John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, diz estar “profundamente satisfeito porque as prioridades de política exterior dos Estados Unidos e os bons ofícios da Santa Sé coincidem em muitos temas”. E não se cansa de agradecer a Bergoglio, como também o faz Raúl Castro, a colaboração para a aproximação entre Cuba e Estados Unidos. Bergoglio reedita com Obama e a partir de outro lugar ideológico, o diálogo e as coincidências que nos anos oitenta uniram João Paulo II e Ronald Reagan, então para lutar contra o comunismo.
Frei Betto, um sacerdote (NT: na verdade, um teólogo, ex-sacerdote) católico brasileiro identificado com a teologia da libertação e um grande aliado de Cuba e de Fidel Castro, sustenta ao contrário que “toda a esquerda latino-americana que conheço está muito feliz com o papa Francisco”, porque “é o primeiro Papa que tem claramente uma opção pelos pobres e que denuncia as causas das injustiças, não somente os efeitos”.
Como situá-lo?
Mas voltando ao tema anterior. Se pode situar com sensatez o papa Francisco em algum “rótulo” político ideológico? Fortunato Mallimaci, reconhecido e prestigioso sociólogo da religião argentino, disse em declarações à agência Paco Urondo, que “um jornalista do New York Times me perguntou se o Papa era liberal, conservador ou de esquerda. Nada disso. É católico, porque é a catolicidade como outra maneira de enfrentar essa concepção liberal e a marxista. Acabado hoje esse marxismo a Igreja retoma seu discurso antiliberal, anticapitalista para catolizar”, agregou. E garantiu que “o catolicismo não pensa a política separada da religião”. Para Eduardo Valdes, embaixador argentino perante a Santa Sé, “o Papa não é marxista, nem populista, nem peronista. É um cristão no sentido mais profundo e quer levar adiante a palavra de Cristo e a conduta de São Francisco de Assis”.
A realidade é que o papa Jorge Bergoglio se transformou numa figura política de relevância internacional que participa ativamente da agenda política, introduz temas na mesma, e fixa posições a partir duma perspectiva católica, cristã, mas também humanista e interreligiosa. Para fazê-lo põe a ênfase na defesa do homem e da vida, e muito especialmente no cuidado dos pobres, dos excluídos, dos refugiados (“desplazados” – deslocados) de qualquer tipo. O cuidado das pessoas e seus direitos, é o ponto que conecta todas as preocupações. E seu slogan político são os três T: teto, terra e trabalho.
Pode ser prematuro falar de Francisco como líder mundial. Porém ninguém pode negar já sua incidência. Por méritos próprios para ler a conjuntura internacional e, a partir daí, interpretar qual pode ser o aporte da Igreja e o seu aporte pessoal. Mas ademais pela importância que a religião (as grandes religiões) jogam no concerto mundial ante o resquício que deixam as crises políticas e ideológicas.
Na Igreja
Dentro da Igreja Católica também há tremores de mudança. Muitos conservadores estão “decepcionados”. Provavelmente porque à luz de alguns antecedentes (dos papas anteriores e os de Bergoglio bispo) esperavam outro discurso e maior proximidade ao poder hegemônico. Não concebem uma Igreja que enfrenta o poder. Não dizem mas temem também o que chamam “relativismo doutrinal”, aludindo às aberturas de Francisco diante de temas que haviam sido tabú para a Igreja (aborto, diversidade sexual, matrimônio), ainda que o Papa até agora não tenha se movido um milímetro da ortodoxia doutrinal. O que mudou é a atitude pastoral pondo a ênfase na aproximação às pessoas concretas, a seus problemas e angústias.
No aparato da Igreja há os que se preocupam porque veem chegar ares novos que talvez os façam perder poder. Alguns, inclusive muitos bispos, preferem não se dar por inteirados de que algo está mudando ou que já mudou. Outros, ao contrário, assinalam que “até o momento Bergoglio não fez nada”, argumentando que fará verdadeiras mudanças quando se modifique a forma de governo e a estrutura de poder ainda vigente e se avance para uma condução colegiada. Para isso se necessitam iniciativas muito fortes de Francisco que, se bem deu indícios de caminhar nesse rumo, ainda estão longe de se concretizar. Os “progressistas”, para qualificá-los de alguma maneira, estão satisfeitos com a agenda de Francisco e seus pronunciamentos. Confiam em que se está produzindo uma mudança que, admiten, era inesperada para eles no momento em que Bergoglio iniciou seu pontificado. Basta escutar as lisonjas a Francisco de teólogos como Leonardo Boff ou Gustavo Gutiérrez.
Se sabe que os conteúdos não são separáveis das formas. Menos neste tempo em que a cultura da comunicação traduz tudo em símbolos, em gestos, em imagens. E Francisco apoia seu discurso numa gestualidade de proximidade, jovialidade, simplicidade e austeridade que repercute muito positivamente nas audiências em geral, católicas ou não. A tal ponto é assim que L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, começou a publicar, pela primeira vez na história da Igreja, caricaturas do Papa. Como o fato de que o Bergoglio escolheu viver numa residência austera este também é um símbolo duma nova época.

Tradução: Jadson Oliveira

Comentários