KATU ARKONADA: O FIM DO CICLO PROGRESSISTA OU A INVERSÃO DO FLUXO POLÍTICO NA AMÉRICA LATINA?

(Foto: Reprodução/Carta Maior)

Esse novo momento exige um esforço de honestidade intelectual para tentar gerar propostas para as esquerdas latino-americanas e caribenhas.


Hugo Chávez: “Que ninguém se equivoque, que ninguém se deixe confundir, porque nós podemos criticar a revolução, mas não esquecer que este é o caminho de salvação da Pátria”.

Por Katu Arkonada - Rebelión - reproduzido do portal Carta Maior, de 14/09/2015
Faz tempo que o ciclo progressista na América Latina e no Caribe vem mostrando um desgaste, que nos leva a supor o seu fim. A partir da morte do Comandante Chávez, e de uma certa inversão do fluxo nos avanços obtidos pelos processos de mudança no continente, a direita começou a construir um discurso que tenta deslegitimar a década de conquistas para as maiorias sociais e populares.
 
Mas, nos últimos tempos, até mesmo os diferentes setores da esquerda vêm construindo a tese do fim do ciclo, aderindo ao discurso da direita contra os governos de esquerda. Um dos representantes da esquerda “lightberal”, o argentino Pablo Stefanoni, fala de uma derivação do lulismo (1) na esquerda latino-americana. Maristella Svampa, companheira de Stefanoni no grupo de apoio ao trotskismo antikirchnerista do FIT (Frente de Esquerda dos Trabalhadores da Argentina, em sua sigla em espanhol), escreveu um artigo no diário oligárquico Clarín sobre uma crise do pluralismo político e um populismo de alta intensidade (2) na Bolívia e no Equador. Enquanto isso, pelo lado da esquerda autonomista, Raúl Zibechi sustenta que estamos não só diante do final do ciclo progressista, mas também que o progressismo não tem sido um avanço (3).
 
Por outro lado, o paraguaio-brasileiro e militante do PT (Partido dos Trabalhadores) Gustavo Codas afirma (4) que Venezuela, Brasil e Equador, cada um com seus diferentes matizes, enfrentam uma série de problemas econômicos e políticos, com uma importante mobilização da direita nacional (às vezes, com apoio do exterior). Essa conjuntura, junto com uma Argentina onde a candidatura presidencial governista é encabeçada por Daniel Scioli, nos leva a pensar que nos encontramos imersos no fluxo contrário ao das mudanças de época iniciadas na América Latina em 1998.
 
Essa onda encerrou a longa noite neoliberal, que teve seu apogeu nos dois anos transcorridos entre o fim de 2004 e o de 2006, quando foi a aliança ALBA-TCP (Alternativa Bolivariana para as Américas – Tratado de Comércio dos Povos, em sua sigla em espanhol) foi lançada, Evo Morales e Rafael Correa chegaram ao poder, surgiram novas ferramentas fundamentais para essas mudanças, como o canal TeleSur e a Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade, e quando, em Mar del Plata, o instrumento imperialista chamado ALCA (a Área de Livre Comércio para as Américas) foi enterrado por três patriotas nosso-americanos: Chávez, Lula e Néstor Kirchner.
 
Pelo contrário, hoje, sem a presença física do comandante venezuelano, com Fidel retirado da condução política em Cuba, com uma direita recarregada, que tenta chegar ao governo dentro ou fora da institucionalidade, com instrumentos de desintegração latino-americana como a Aliança do Pacifico, o TPP (Tratado Trans-Pacífico, em sua sigla em inglês) e o TISA (Acordo sobre o Comércio de Serviço, em sua sigla em inglês), tentando construir um novo consenso de reivindicação neoliberal, a guerra de posições na Nossa América empurra as forças de esquerda, tanto as revolucionárias quanto as reformistas, a uma tentativa de recuperação.
 
Esse novo momento exige um esforço de honestidade intelectual para, a partir da lealdade e do compromisso com os processos, tentar ler melhor o momento de inversão do fluxo e gerar propostas para as esquerdas latino-americanas e caribenhas. Nesse sentido, propomos sete teses para alimentar o debate sobre a necessidade que temos de fazer um diagnóstico do momento histórico no qual nos encontramos, com o fim de obter uma radiografia da conjuntura atual.


1 – A crise do capitalismo chegou para ficar


Entre 2004 e 2014, o preço do barril de petróleo foi de 86,989 dólares em média. Foram 87 dólares em média durante dez anos, apesar de que, em 2008, após a quebra do Lehman Brothers, o preço do barril de petróleo caiu de 147 dólares em julho para 35,58 dólares no final daquele ano.
 
Atualmente, o barril de petróleo se mantém entre 45 e 50 dólares, e não há previsão de que suba significativamente enquanto a desaceleração da China favoreça o excesso de produção atual. Ao mesmo tempo, importantes produtores, como a Arábia Saudita e a Venezuela, não diminuem a produção, para garantir os recursos que os respectivos países necessitam, o que alimenta o ciclo vicioso e dá a entender que não há como desativar a sobreprodução. Além da redução da demanda do gigante asiático e da manutenção da produção dos países produtores da OPEP, também deve-se considerar a produção norte-americana de gás de xisto mediante fracking – método de extração que se assemelha a uma espécie de terrorismo ambiental, e que só é rentável a partir de preços entre 60 e 70 dólares. Portanto, é entre a faixa atual, dos 50 dólares, e a dos 70, que permitiria uma maior rentabilidade aos campos de extração, que a guerra energética não declarada entre Estados Unidos e Arábia Saudita vai se mover nos próximos meses.
 
Em todo caso, não parece que os preços do petróleo possam voltar, nos próximos anos, a se aproximar dos valores vistos na década passada e começo da atual, que permitiram aos processos de mudança na América Latina e no Caribe uma redistribuição da riqueza e redução da pobreza sem precedentes. Se, além disso, somamos a tendência de baixa nos preços dos minerais, sobretudo os que a China costuma comprar em quantidades importantes – consome cerca de 40% da produção mundial – parece que os tempos de vacas gordas terminaram definitivamente.
 
Tudo isso leva à necessidade de uma diversificação produtiva e uma mudança na matriz energética. É necessário gerar uma transição do atual modelo extrativista, herança colonial e neoliberal, a um novo modelo de desenvolvimento que incorpore o direito ao desenvolvimento, os direitos da Mãe Terra, e a necessidade de tirar da pobreza uma parte significativa da população.


2 – O mundo multipolar já está aqui

Embora estejamos acostumados a falar na transição a um novo mundo pluripolar e multicêntrico, a realidade é que já estamos imersos nele. O declínio da hegemonia dos Estados Unidos (ao mesmo tempo que entra numa perigosa fase de dominação violenta), o surgimento dos BRICS, o rol (o papel) geopolítico da América Latina nas relações entre os países do sul, ou o avanço da integração latino-americana com a CELAC e sem Estados Unidos e Canadá, reflexo da Pátria Grande que os libertadores sonharam, são claros sintomas desse novo cenário mundial.
 
Existem duas variáveis fundamentais neste contexto atual da América Latina e do Caribe. A retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba, com embaixadas reabertas, marcando o início de uma nova era, simboliza a soberania de toda a Nossa América, não somente de uma Cuba digna ao longo de mais de 50 anos de agressões ininterruptas. O outro sintoma é uma presença cada vez maior da China na região. Hoje em dia, exceto no caso do Porto de Mariel, em Cuba, todos os grandes investimentos na região são de capital chinês, começando pela faraônica construção de um canal na Nicarágua, passando pelos principais investimentos em recursos naturais, petróleo, gás e mineração. Mas essa presença chinesa cada vez maior demonstra grandes diferenças com a outrora hegemonia estadunidense – ao contrário do hard power dos Estados Unidos, baseado na imposição econômica ou militar, se está constituindo um soft power com uma certa paciência oriental, que faz da diplomacia econômica e cultural a base para as relações. Para ser mais explícito, a China não parece disposta a construir bases militares na América Latina, ou a patrocinar golpes de Estado contra governos legítimos.
 
Mas foi a voraz demanda da China por recursos naturais o que provocou uma reprimarização da economia latino-americana. Em geral, exceto nos países onde os recursos estão nas mãos do Estado, que pode controlar o fluxo, o setor primário está mais ligado ao capital financeiro que aos outros setores da economia. Na América Latina e no Caribe se debate atualmente entre um triângulo incerto entre um Consenso Bolivariano, um Consenso de Beijing e um Consenso das Commodities.


3 – A necessidade imperiosa de aprofundar a integração

Na medida em que a crise do capitalismo se aprofunda e a direita avança em sua ofensiva, os processos correm o risco de se fechar em si mesmos e manter uma posição mais defensiva. Nenhum processo poderá avançar muito e aprimorar as mudanças se não estiver inserto em um processo de integração latino-americana mais amplo.
 
É necessário, portanto, ampliar a integração política, e buscar também a integração econômica, científica, tecnológica e cultural, uma integração ampla, que permita, como propõe Gustavo Codas, criar cadeias de valor regionais, para inverter o processo de reprimarização continental.
 
Ao mesmo tempo, se faz urgente e necessária a reativação da ALBA, e ir dotando a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) de uma maior institucionalidade.


4 – Desativar os instrumentos para a desintegração latino-americana


É necessário incluir os países que ainda apostam no modelo econômico neoliberal ao processo de mudanças, especialmente os da Aliança do Pacífico, e em particular a Colômbia e o México. Por isso, temos que fazer nossas a reivindicação pela paz com justiça social na Colômbia, e a aposta por fortalecer um projeto alternativo de esquerda no México, fronteira sul dos Estados Unidos. A incorporação desses dois países não só abriria um horizonte radicalmente diferente, mas aprofundaria a integração nosso-americana e ajudaria a desativar os novos ALCA do Século XXI, os instrumentos para a desintegração latino-americana – a Aliança do Pacífico, o TPP e o TISA.


5 – Enfrentar a direita recarregada


Durante boa parte do processo de mudança de época, vimos uma direita desorientada e na defensiva. Foram as embaixadas dos Estados Unidos que fizeram o papel de principal opositor aos governos de esquerda na região, patrocinando golpes de Estado, duros ou brandos. Os opositores locais eram simples títeres, ainda ancorados no discurso do Consenso de Washington e distribuídos entre os velhos partidos defensores do neoliberalismo.
 
Entretanto, hoje temos uma direita renovada, assessorada pelos gurus do marketing político neoliberal e assumindo um rol (um papel) de paraopositores, que sabem se camuflar sob uma estética mais atraente e um discurso mais amável, tão pós-moderno quanto pseudo pós-neoliberal, que não ataca diretamente as conquistas alcançadas na década ganhada.
 
Essa direita reciclada e transformista tenta roubar as bandeiras da democracia e dos direitos humanos, apelando sobretudo aos novos atores da política, a juventude e as classes médias. E aí é onde os processos têm um desafio importante: reatualizar tanto o seu programa quanto a sua práxis política, para seduzir uma juventude que não viveu o terrorismo social neoliberal e chega à maioridade sem a noção de que a presença do Estado na economia e na redistribuição da riqueza é algo que está em risco. O mesmo sucede com as novas classes médias, que alimentam a ilusão de continuar seu ascenso social, e por isso encontram atrativa a ideia de votar por um “gestor”, normalmente um candidato proveniente do mundo empresarial, com um discurso que apela à cidadania moderada, que não esteja rotulada como esquerda ou direita.
 
Diante disso, mais que perder tempo em atacar essa direita que cumpre com sua tarefa, amparada pelas elites econômicas e com o apoio das transnacionais comunicacionais, devemos reatualizar e tornar o projeto político das esquerdas mais atraente, a única maneira de sustentar e aprofundar os processos. As possíveis derrotas eleitorais que estão por vir serão de responsabilidade única e exclusivamente nossa.


6 – A necessidade de ter lideranças

E para nos prepararmos para as próximas batalhas políticas, é necessário fazer um debate sobre a questão das lideranças. A morte do Comandante Hugo Chávez nos coloca diante do espelho, e nos leva a repensar os processos que dependem demais de líderes de enorme peso político e intelectual. Mas essas lideranças também são fruto de uma época de resistência e insurreição contra o neoliberalismo, que já deixamos para trás.
 
Será difícil que volte a surgir um líder como Evo Morales na Bolívia, alguém que leve em sua essência o componente anti-imperialista, anticolonial e anticapitalista, capaz de expulsar a DEA, a USAID e o próprio embaixador estadunidense do território nacional, levando os dirigentes sindicais que combateram os governos neoliberais a ocupar cargos de condução política no Estado, levando as relações internacionais do movimento social a construírem laços com outras esquerdas dentro do governo. Por isso, é mais necessária que nunca a construção de lideranças coletivas e o fortalecimento do poder popular e da formação política, pois somente a partir dessas sementes poderão germinar outros dirigentes, preparados para liderar uma nova etapa ascendente de mudanças de época, que possa deixar para trás o atual fluxo conjuntural. Porém, ao mesmo tempo, enquanto líderes como Evo sigam tendo a capacidade de conduzir os processos, devemos habilitar os mecanismos que sejam necessários para que a legalidade não obstaculize a legitimidade.


7 – A importância das batalhas eleitorais

Por mais paradoxal que pareça, a irreversibilidade dos processos depende, em boa parte, das vitórias eleitorais que a esquerda for capaz de conseguir neste momento histórico. Para isso, é necessário não retroceder em nenhuma das conquistas alcançadas até o momento. Sabemos que chegar ao governo não significa ter o poder, e que uma vez chegando lá é preciso enfrentar uma guerra de posições com o poder exercido pelas burguesias nacionais e internacionais, através de suas fortalezas econômicas ou midiáticas. Mas é preciso primeiro conseguir essa vitória eleitoral para poder chegar a esse momento de consolidar a hegemonia.
 
Este 2015 nos deixa ainda duas importantes batalhas eleitorais: as eleições presidenciais da Argentina, em outubro, e as legislativas da Venezuela, em dezembro. Apesar das contradições com qual nos enfrentamos sobre esse tema, é preciso apoiar a candidatura de Scioli-Zannini na Argentina, bem rodeada por um núcleo duro kirchnerista. Depois virá o momento da crítica, se o próximo governo se desvia do horizonte traçado por Néstor Kirchner e Cristina Fernández. E o mesmo cenário se reproduz na Venezuela, onde devemos dar todo o apoio aos candidatos e candidatas do PSUV e do Grande Polo Patriótico, contra o terrorismo econômico e midiático que a Revolução Bolivariana e Chavista enfrenta atualmente. O mesmo no caso do Brasil e do Equador, onde devemos apoiar os legítimos governos de Dilma Rousseff e Rafael Correa contra as pressões.
 
Já não é tempo de política de ficção, e sim de fazer definições. É tempo de audácia, para gerar pensamento crítico, sempre priorizando os que vêm de baixo, sempre priorizando as visões à esquerda, suando a camisa com a prática da política em terreno, ainda que em meio às contradições, e não lendo a realidade com o lápis vermelho virtual numa mão, através do wifi dos cafés dos bairros da classe média. Recordando as palavras do Comandante Hugo Chávez: “Que ninguém se equivoque, que ninguém se deixe confundir, porque nós podemos criticar a revolução, mas não esquecer que este é o caminho de salvação da Pátria”.


Notas:


1 – A lulização da esquerda latino-americana: http://www.eldiplo.org/notas-web/la-lulizacion-de-la-izquierda-latinoamericana


2 – Termina a era das promessas andinas: http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/Termina-promesas-andinas_0_1417058291.html


3 – Fazer o balanço do progressismo: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/08/04/hacer-balance-del-progresismo


4 – Desafios ao ciclo progressista na América Latina: http://www.mateamargo.org.uy/2015/08/13/desafios-al-ciclo-progresista-en-america-latina
 
Tradução: Victor Farinelli

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