Para o pensamento político tradicional, os dois
conceitos são complementares. Mas a Europa demonstra algo que Max Weber já
intuía: liberdade não pode florescer sob leis de mercado.
Na Europa de hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o
Capital Financeiro.
Por Michael
Löwy – reproduzido de Outras
Palavras (Carta Capital) — publicado em 20/08/2015
Vamos começar com uma citação de
um ensaio sobre a democracia burguesa na Rússia, escrita em 1906, após a
derrota da primeira revolução, de 1905:
“É profundamente
ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo,
da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem estabelecido nos
Estados Unidos (…), e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos os significados
possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como essas coisas
podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação capitalista?” [1]
Quem é o autor deste comentário
perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov? Na verdade, ele foi feito
por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês. Apesar de Weber nunca ter
desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo aqui que existe uma contradição
intrínseca entre o capitalismo e a democracia.
A história do século XX parece
confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando o poder da classe dominante
pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi jogada de lado como um luxo que
não pode ser mantido, e substituída pelo fascismo — na Europa, nos anos 1920 e
1930 — ou por ditaduras militares, como na América Latina, entre os anos 1960 e
1970.
Por
sorte, esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas
últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de
baixa intensidade, sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia.
É claro que ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o
PMU, Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças
limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social
liberal.
O
declínio da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico
da União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência,
enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a
Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico
Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos
semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”. Ou
seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam responsáveis nem
diante dos eleitores, nem de seus representantes eleitos”: essa é a única
maneira de nos proteger contra “a tirania da maioria”. Em tais instituições,
“qualidades tais quais expertise, discrição profissional e
coerência (…) são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e
direta” [2]. Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza
oligárquica e antidemocrática da UE.
Com a
crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente
editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu que a situação
é excepcional, e explica por que os procedimentos democráticos não podem ser
sempre respeitados; apenas quando voltarmos aos tempos normais, poderemos
restabelecer sua legitimidade. Temos, então, um tipo de “estado de exceção”
econômico/político, no sentido que descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o
soberano que tem o direito de proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de
exceção?
Por algum
tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei teve o
direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da Assembleia
Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do povo francês: a
última palavra pertencia a Sua Majestade.
Na Europa de hoje, o rei não é um
Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital Financeiro. Todos os atuais governos
europeus — com a exceção do grego! — são funcionários deste monarca
absolutista, intolerante e anti-democrático. Quer sejam de direita,
“extremo-centro” ou pseudoesquerda, quer sejam conservadores, democratas
cristãos ou social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de veto de
Sua Majestade.
O soberano absoluto e total hoje,
na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro global. Os mercados financeiros
ditam a cada país os salários e aposentadorias, os cortes em despesas sociais,
as privatizações, a taxa de desemprego. Há algum tempo, eles nomeavam
diretamente os chefes de governo (Lucas Papademos na Grécia e Mario Monti na
Itália), escolhendo os chamados “experts”, que eram servos fiéis.
Vamos olhar mais atentamente a
alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde eles vêm? Mario Draghi,
chefe do Banco Central Europeu, é um antigo administrador do banco
internacional de investimentos Goldman Sachs; Mario Monti, ex-Comissário
Europeu, também é um antigo conselheiro da Goldman Sachs. Monti e Papademos são
membros da Comissão Trilateral, um clube muito seleto de políticos e banqueiros
que discutem estratégias internacionais.
O presidente desta comissão é
Peter Sutherland, antigo Comissário Europeu, e antigo administrador no Goldman
Sachs; o vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo Ministro da Economia tcheco,
é agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa Oriental. Em outras
palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa da crise foram
funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela crise financeira
iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que existe uma
conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas ilustra a natureza
oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.
Os governos da Europa estão
indiferentes aos protestos públicos, greves e manifestações maciças. Não se
importam com a opinião ou os sentimentos da população; estão apenas atentos —
extremamente atentos — à opinião e sentimentos dos mercados financeiros e seus
funcionários, as agências de avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia,
consultar o povo em um referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime
contra o Deus Mercado. O governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da
Esquerda Radical, foi o único que teve coragem para organizar tal consulta
popular.
O
referendo grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e
sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos que
disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das
finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à transformação da
Europa, de monarquia capitalista a república democrática. Mas as atuais
instituições da oligarquia europeia têm pouca tolerância à democracia.
Imediatamente puniram o povo grego por sua tentativa insolente de recusar a
austeridade. A “catastroika” está de volta à Grécia com uma vingança, impondo
um programa brutal de medidas economicamente recessivas, socialmente injustas e
humanamente insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao
povo grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o
presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália Matteo
Renzi).
* * *
Enquanto
a crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente tentação,
por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública para um bode
expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem documentos, imigrantes
de países não-europeus, muçulmanos e ciganos estão sendo apresentados como a
principal ameaça aos países. Isso abre, é claro, enormes oportunidades para
partidos racistas, xenófobos, semi ou completamente fascistas, que estão
crescendo, e já são, em muitos países, parte do governo — uma ameaça muito
séria à democracia europeia.
A única esperança é a crescente
aspiração por uma outra Europa, que vá além das políticas de competição
selvagem e austeridade brutal, e das dívidas eternas a serem pagas. Outra
Europa é possível — um continente democrático, ecológico e social. Mas não será
alcançado sem uma luta comum das populações europeias, que ultrapasse
as barreiras étnicas e os limites estreitos do Estado-nação. Em outras
palavras, nossa esperança para o futuro é a indignação popular, e os movimentos
sociais, que estão em ascensão, particularmente entre os jovens e mulheres, em
muitos países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez mais óbvio que
a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última análise, contra o
próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza, como Max Weber já
apontou, cem anos atrás.
–
[1] Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
[1] Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
[2] Citado in Perry
Anderson, Le Nouveau Vieux
Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.
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