(Foto: DyN/Página/12) |
“Não pude impedir Auschwitz. Nem as bombas
atômicas. Hoje, já não posso impedir nada. Nem esse assunto das Torres Gêmeas.
Nem o Afeganistão, nem o Iraque. Nem o terrorismo islâmico. Nem que o Estado de
Israel seja vingativo até a crueldade... (...) Nem o Prêmio Nobel a Obama pude
impedir. Nem o Oscar a Sandra Bullock. Nada. (...) Já não creio em mim. (...)
Deus não crê em Deus”.
Por José
Pablo Feinmann (filósofo argentino) – no jornal Página/12, edição impressa de 06/04/2014
Está
sentado no primeiro degrau da escadaria da Catedral. Poderia parecer um
mendigo; porém não, não é. Tem um casaco azul escuro, as golas levantadas e os sapatos
sem lustrar. “A Catedral fechou” – me diz. “Se vinha pedir alguma coisa a Deus chegou
tarde. Igualmente, sempre é tarde para pedir alguma coisa a esse personagem.” “De
onde tirou isso?” “Me convida a um vinho?” Peço ao garçom um Rutini tinto. “Não
queria tanto”, diz o cara. Tem a barba crescida e os olhos claros, bem claros.
Trazem o Rutini. Sirvo dois copos. “Diga-me uma coisa...” “Deus, pode me chamar
de Deus.” “Veja bem, se está pirado já mando lhe meterem numa clínica
psiquiátrica.” “Não perdamos tempo. Falo sério, sou Deus.” “E o que faz aqui,
com esta roupa, disfarçado de ser humano? Ser parte dos homens já o tentou seu filho.
E não se deu bem.” “Sabe que morreu? Isso da ressurreição é uma lenda. Morreu dos
ferimentos com que o haviam injuriado. Morreu em meus braços.” “E o senhor, que
diz ser Deus, não pôde salvá-lo?” “Não posso salvar ninguém. Vim assim, como
homem, para ver se poderia convencer os povos a abandonar as guerras. Nem tentei.
Teriam rido de mim. Já é tarde. Meu tempo passou. Não sou onipotente nem
onipresente. Se não sou isso, não sou Deus.” “Se apresentou como Deus.” “É o
hábito. Me restam alguns pequenos poderes. Sei que seu filho de 10 anos está
enfermo. Que necessita dum transplante de rim. Que amanhã será operado e por isso
o senhor ia à Catedral. Para rezar por sua salvação. Sei que está sofrendo muito.”
“Não poderia salvá-lo? Não lhe resta poder para isso?” “Vê? Já acredita que sou
Deus. A dor é a base da fé. Não, nem para isso tenho poder. O Mal me derrotou. Os
homens escolheram Satanás. Fracassei em tudo. Não pude impedir que a serpente
seduzisse Eva. Que Caim matasse Abel. Salvei os judeus da escravidão no Egito. Mas,
quantos egípcios matei? Ou não eram homens? Não respondi as acusações de Jó. Me
limitei a falar-lhe do meu poder. Da minha infinita Criação. Ele precisava de outra
coisa. Não lhe dei. Não pude salvar meu filho. Ignorei seu desespero. Abandonei-o.
A Igreja se transformou num Estado autoritário. Não pude impedir a Inquisição.
Torquemada riu na minha cara. Menos ainda pude impedir as matanças do Novo
Mundo. A Espada e a Cruz foram a mesma coisa. As Cruzadas, empreendimentos de
conquistas e saques em meu nome. Não pude impedir que queimassem Giordano Bruno
e calassem Galileu. Para que continuar? Não pude impedir Auschwitz. Nem as
bombas atômicas. Hoje, já não posso impedir nada. Nem esse assunto das Torres Gêmeas.
Nem o Afeganistão, nem o Iraque. Nem o terrorismo islâmico. Nem que o Estado de
Israel seja vingativo até a crueldade, que tenha introduzido a tortura na
Constituição. Pode imaginá-lo? Meu povo eleito. O que melhor deveria compreender
a dor dos outros. Nem o Prêmio Nobel a Obama pude impedir. Nem o Oscar a Sandra
Bullock. Nada.” “Também se ocupa de Sandra Bullock?” “O Bem e o Mal se jogam em
todos os terrenos. Fracassei. Tanto fracassei que já nada posso. Tanto, que já
não creio em mim.” “Deus não crê em Deus?” “Deus não crê em Deus. Mas não sofra,
querido amigo. Seu filho vai se salvar. A Ciência, o novo Deus dos homens, o
salvará.” Se levanta e lentamente, pesaroso, se vai.
No dia seguinte
operam meu filho. Por causa de meu prestígio trouxeram um grande médico
argentino que vive nos Estados Unidos. Chego à clínica e peço para falar com
ele. Não o conheço. Chegou esta manhã. Sai do centro de cirurgias para me ver.
Não tirou a máscara cirúrgica. Sei que se chama Rogelio Alvarez Iglesias. Me cumprimenta.
“Não me disseram quem é o senhor – diz. Mas deve ser alguém importante para que
me tenham trazido com urgência.” “Sou o ministro da Justiça.” Me toma pelo braço.
“Veja bem, senhor ministro. Tudo será muito fácil. A Ciência, durante a última
década, progrediu muitíssimo. Me disseram que está muito angustiado, que ama seu
filho e sofre. Soa lógico. Se o acalma rezar, faça-o. Não vai servir de nada. A
única coisa que salvará seu filho é o que eu faça neste centro cirúrgico. Se diz
que os médicos, quando operamos, quando temos em nossas mãos a vida ou a morte
de nossos pacientes, padecemos do complexo de Deus. Lhe asseguro que eu não. Me
basta ser um homem da Ciência. A Ciência superou Deus. Por que vou querer ser a
imagem de um derrotado?” Tira a máscara e me olha sorridente. Algo estremecedor
se estabelece entre ele e eu. É idêntico a Deus. As linhas do rosto, as rugas e
os mesmos olhos claros. “Por que me olha assim? Me reconhece?” “Não, há algo vermelho
em seus olhos. Só de leve. Não é qualquer um que o detecta”. “É uma irritação,
só isso. Tampouco dormi bem. O avião, o senhor sabe”. “Sim, claro. E tem uma
pequena mancha, também vermelha, junto à boca, é pouco visível”. “De nascença.
A que vem isto? Não posso perder tempo. Ou não o sabe? Senhor ministro, seu filho
vai sair deste centro cirúrgico perfeitamente são. Dou-lhe minha palavra. Até
logo.”
Me sento
na sala de espera. São fisicamente iguais, mas muito diferentes. Alvarez
Iglesias é um triunfador. Um homem seguro de si. Orgulhoso, algo petulante, mas
salvará meu filho. De repente, noto que Deus se sentou ao meu lado. Não perco
tempo. Tudo se tornou urgente. “Não quero nem posso me meter em questões
metafísicas ou teológicas – digo. Alvarez Iglesias curará meu filho. Mas só o
senhor pode responder algumas perguntas que me dominam. Que sempre quis saber.
Que sempre procurei a resposta. Como muitos outros homens. Onde está o Mal?”
“Entre os homens. Já o disse. Sua angústia me torna repetitivo. O Mal me derrotou.
Levo séculos lutando contra ele. É inútil. Os homens o preferem. A bondade não
serve de nada para a indústria armamentista. A guerra sim. A guerra é o Mal.
Está a serviço da Morte. Satanás triunfou. A Ciência e a técnica decidiram minha
derrota. Em breve, os homens destruirão este planeta. O desequilíbrio na Criação
será devastador. Enquanto isso, governam os servidores do Anjo Caído. Há algo
que não podem evitar. Os olhos se tornam avermelhados. E têm uma pequena mancha
junto à boca, do lado esquerdo. Estranho, não? Que não tenham podido superar um
problema oftalmológico. Nem eliminar uma simples mancha”. “Salvo que provenha do
espírito para assinalar sua crueldade interior. Que será, conjecturo, infinita.
O senhor o sabe. O senhor criou o Mal. Algo disso, algo mau, há de haver em seu
coração para que possa havê-lo feito” – digo. “Isso penso. E isso pensam muitos
teólogos. Até logo”, diz abruptamente. “Talvez nos vejamos outra vez.” Sorri e no
sorriso transmite uma grande tristeza. Diz: “Se Deus quiser”. Lança uma gargalhada
que ressoa nas paredes, sonora e de um cinismo brutal. Então se vai. Sempre se
disse que Deus e o Diabo se parecem. Sim, são idênticos. Porém Satanás – que agora
está operando meu filho – vive seus dias de glória. Deus se veste de trapos,
confessa ser impotente e derrotado. Admite não poder fazer nada de tudo isso
que os milhões de seres humanos, que ainda rezam com apaixonada esperança, lhe
pedem. Desconhecem a verdade. Se a soubessem, não rezariam. Deus é ateu.
Tradução: Jadson Oliveira
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