TUDO O QUE CHÁVEZ DEIXOU COMO LEGADO

(Foto: Internet)
A criação das missões sociais, a recuperação da soberania petrolífera e a construção da união latino-americana fazem parte de um ideário. Os desafios que enfrenta o projeto político do líder venezuelano. Veja a análise de Alfredo Serrano Mancilla no livro ‘El pensamiento económico de Hugo Chávez’.
Traduzido do jornal argentino Página/12, edição impressa de ontem, dia 26
O pagamento das dívidas sociais, a recuperação da soberania petrolífera e a construção de uma aliança entre os países latino-americanos foram os principais legados deixados pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez a seu país. “Ele (Chávez) sabia que o neoliberalismo não é algo marginal nem parcial, mas que se trata duma megaestrutura global tão intrincada da qual não se pode sair a não ser com uma reforma total”, afirmou o doutor espanhol em Economia, Alfredo Serrano Mancilla, que visitou Buenos Aires para a apresentação do seu livro ‘El pensamiento económico de Hugo Chávez’ (Ediciones del CCC). Nele, indagou acerca das principais influências que determinaram, uma vez no poder, as políticas do ex-chefe de Estado e como foi seu árduo percurso para conseguir superar o neoliberalismo em seu país. Ademais, em conversa com o Página/12, o também atual diretor executivo do Centro Estratégico Latino-americano Geopolítico (Celag), analisou a atualidade econômica da Venezuela e os principais desafios que tem pela frente o governo do presidente Nicolás Maduro.
Serrano Mancilla expressou que as origens humildes do ex-presidente venezuelano lhe permitiram, já desde pequeno, conhecer bem de perto os problemas enfrentados por seu país. “Na época quando a Venezuela gozava do auge petroleiro nunca haviam entrado tantas divisas no país. No entanto, nessa mesma época, Chávez fabricava e vendia barriletes (segundo dicionário, pipa, papagaio, arraia) para levar um pouco mais de dinheiro para sua casa. Este é um bom exemplo da falta de redistribuição de renda na Venezuela.” A carreira militar, assinalou o estudioso espanhol, permitiu ao ex-presidente, por um lado, assegurar o sustento econômico pessoal e, por outro, receber a instrução que influenciou seu pensamento econômico. “Chávez teve um processo de formação muito complexo, e sobretudo muito eclético: tomou um pouquinho de tudo e assim moldou seu pensamento. Ele tomou com muita força de Simón Rodríguez, Ezequiel Zamora e Simón Bolívar”, explicou. “De Bolívar ele admirava a pregação em favor da ‘liberdade e emancipação’; de Rodríguez, o ‘espírito’ de não dar respostas vindas ou copiadas de outros lugares, o seu famoso ‘inventamos ou erramos’; enquanto que de Zamora, sua atitude combativa, já que dos três foi quem mais lutou nas ruas”, afirmou o diretor executivo do Celag.
Entretanto, o ex-presidente venezuelano não formou seu pensamento somente através da obra dos próceres da história de seu país,  também foram importantes alguns presidentes latino-americanos de corte nacionalista-desenvolvimentista da década de 1970. “(Omar) Torrijos do Panamá, (Juan Francisco) Alvarado do Peru e (Juan José) Torres da Bolívia foram pessoas que Chávez admirou. Lhe interessava, particularmente, o conceito de ‘fronteira interior’ de Torres, assim como a disputa que Torrijos tinha com os Estados Unidos em termos de independência”, expressou Mancilla, cujo livro começa a ser vendido na Argentina.
“Chávez dizia que ‘só se pode planejar a longo prazo se as pessoas não morrem a curto prazo’”, disse Mancilla (Foto: Dafne Gentinetta/Página/12)
Chávez, sustentou o economista, soube compreender os fundamentos do processo social que se estava gestando em seu país a partir dos violentos protestos que tiveram lugar na capital venezuelana em 1989 (o famoso “Caracazo”) contra as severas políticas neoliberais que havia implementado o então presidente Carlos Andrés Pérez. “Com um povo forte e vigoroso que demanda e exige, Chávez entendeu que havia que revogar a Constituição, fazer uma assembleia constituinte para gerar um novo pacto das maiorias. E este pacto ia ser com o povo, não com as elites dominantes”, assinalou.
Por isso, logo que assumiu sua primeira presidência em 1999, o líder venezuelano impulsionou uma nova Constituição que foi promulgada antes que finalizasse o ano. “Esta nova Constituição contempla a recuperação da soberania, de setores estratégicos. Busca estabelecer uma política redistributiva para as maiorias, romper a forma como a Venezuela estava subordinada no mundo. Chávez queria resolver o presente para modificar o futuro. Ele mudou o marco legal para evitar a herança de estruturas legais que poderiam significar um freio para a mudança mais adiante”, analisou o diretor executivo do Celag. A nova Carta Magna permitiu ao ex-chefe de Estado atacar os temas mais urgentes com maior precisão. Mancilla lembrou que a primeira urgência foi a resolução das dívidas sociais das maiorias. “Chávez costumava dizer ‘só se pode planejar a longo prazo se as pessoas não morrem a curto prazo’. Foi por isso que criou as Missões Bolivarianas (programas sociais que contemplavam alfabetização, consultas médicas gratuitas e acesso à moradia).
“Estas não eram uma cópia do Estado de Bem-Estar europeu, porque não implicam uma negociação com o capital, se trata de algo inegociável”, afirmou. Outra das conquistas do governo do ex-presidente foi a recuperação da soberania petrolífera, que tinha sido cedida aos poderes econômicos internacionais. No ano 2000, recordou Mancilla, o então chefe de Estado convocou uma reunião dos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) para “frear” os Estados Unidos, que utilizavam a Agência de Energia Internacional (AIE) para fixar os preços do petróleo a partir da política norte-americana. “Outro pilar no pensamento econômico de Chávez foi a construção da ‘união’ latino-americana, já que entendia que não há possibilidades duma revolução nacional se não ia acompanhada duma revolução regional. Ele acreditava que não se poderia resistir ao capital internacional da Venezuela sem uma aliança regional que permita a colaboração mútua. Foi por isso que junto aos presidentes (Néstor) Kirchner e (Luiz Inácio) Lula da Silva, trabalhou pela criação da União das Nações Sul-americanas (Unasul)”, disse.
Mancilla expressou que, apesar dos avanços econômicos conseguidos durante os dois mandatos de Chávez, Venezuela tem sérios problemas de eficiência. “Depois das eleições de 2012, Chávez propôs a necessidade de dar um “golpe de timón” (golpe de timão, expressão muito usada na Venezuela, uma correção de rumos para por as coisas no caminho correto) porque reconheceu as falhas no modelo. Ele se deu conta de que tem que combater o ‘rentismo importador do século 21’: a demanda cresceu tanto que a oferta produtiva nacional não pôde seguir essa velocidade.” Ademais, a falta de produtos de primeira necessidade é uma das grandes questões que o atual presidente venezuelano não pode terminar de resolver. “É curioso, porque há desabastecimento de produtos como o leite mas não de iogurte. A mesma matéria prima vale para uma coisa e não para a outra. É evidente que há falhas de eficiência, mas o desafio é mudar a forma de pensar a matriz produtiva”, disse Mancilla.
Outra dívida a saldar, observou o expert, é a dependência econômica da exportação do petróleo. No entanto, temos que levar em conta que um país que tem uma dívida social tão grande não pode “abrir-se com facilidade” da renda do petróleo. “Depois das inundações em Caracas no final de 2010, durante o ano seguinte Chávez construiu mais moradias sociais do que as que foram feitas no mesmo ano nos Estados Unidos. A renda do petróleo permitiu concretizar a visão ‘humanista que tinha Chávez sobre a economia’”, sublinhou. Ainda assim, esclareceu o economista, o desenvolvimento petrolífero deveria ser complementar ao de setores como o turístico, que “tem potencialidades muito fortes em matéria de renda para a Venezuela”.
Mancilla expressou que Chávez estaria satisfeito com o trabalho de Maduro à frente do Estado venezuelano, ainda que tenha imaginado que num hipotético encontro lhe pediria ainda mais trabalho. “Maduro foi leal e pôde superar muitos momentos de dificuldade, pelo que Chávez o felicitaria por isso. Mas também lhe falaria ao ouvido sobre a necessidade de continuar dando ‘saltos para frente’”, imaginou o doutor em Economia. “Chávez tinha a habilidade de criar novas políticas e acredito que lhe indicaria que trabalhasse nisso. Por que não criar uma agência de qualificação de risco latino-americana? (ver observação), Por que não criar portas adentro certificados de produção ao invés de certificados de não produção?, Por que não dar divisas para que se produza ao invés de importar? Tenho certeza que Chávez o felicitaria por continuar avançando e lhe daria milhares de ideias.”
Informe: Gustavo Gerrtner.

Tradução: Jadson Oliveira

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