MEIOS E COMUNICAÇÃO: MODELO GLOBO - POR HUGO MULEIRO

(Foto: Internet)
Um olhar sobre telenovelas, poder e política. Hugo Muleiro faz uma leitura crítica duma produção brasileira recentemente apresentada na TV argentina.

Por Hugo Muleiro (*) – no jornal argentino Página/12, edição impressa de 28/01/2015

O canal Telefe concluiu nos primeiros dias de 2015 a emissão de Flor do Caribe, telenovela na qual a Rede Globo, corporação midiática dominante no Brasil e que costuma hostilizar os governos do Partido dos Trabalhadores com operações diversas e sofisticadas, propõe um singular modelo de organização social, onde os brancos e os militares e a fé são os únicos capazes de resolver conflitos complexos e dramáticos.

A Globo é um dos maiores produtores de telenovelas do mundo. Suas emissões chegam a 90 países e em nossa região tem alianças com Telefe, Canal 13 do Chile e Azteca do México, entre muitos outros. Dezenas de milhões de brasileiros podem receber em algum momento do dia, ainda que não o busquem nem desejem, um conteúdo do multimídias, através de seu canal central, dos regionais, rádios, jornais, revistas e a multiplicada presença na Internet.

Flor do Caribe transcorre na Vila dos Ventos, balneário paradisíaco no Atlântico, perto de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, nordeste, que teve protagonismo modesto na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos instalaram ali uma base aérea pela localização estratégica da cidade, o ponto mais próximo do continente africano. De autoria de Walter Negrão e direção de Jaime Monjardim, a telenovela transcorre pelos clichês conhecidos do homem mau que trai o amigo bom e quer ficar com sua mulher, num ir e vir incessante de traições e ciladas. Mas o produto é mais complexo já que, conforme sua tendência, a Globo se ocupa de apimentar os assuntos amorosos e o desfile de corpos bronzeados nas praias e águas turquesas com toques de realismo político: o avô do homem mau, por exemplo, é um criminoso de guerra holandês ativo no Holocausto e que, com identidade falsa, construiu um império econômico no Brasil. O politicamente correto é que termina na prisão, julgado na Alemanha.

O modelo que a Globo propõe para a história de óbvio final feliz é uma espécie de “sonho infantil” (“sueño del pibe”) da direita brasileira: na Vila dos Ventos a justiça só é alcançada com a ação dos “tenentes”, oficiais da base da força aérea na região. Lateralmente, a polícia faz alguma intervenção, mas não se veem autoridades civis em nenhuma ocasião, não aparecem nunca, porque a organização social que a Globo propõe não os quer.

“Os tenentes” capturam o criminoso nazista, impedem assassinatos, dão uma mão ao mocinho — ex-aviador militar — cada vez que tem um problema, e até ajudam a pintar sua casa. O comandante, ademais, tem tempo para construir com um jovem do povoado uma reprodução dum “disco voador” que acredita ter visto na infância. Já que os militares são assim tão bons e nos protegem quando necessitamos, para que queremos política, eleições e funcionários civis?

A complexidade da mensagem está dada por um olhar bonachão, liberal no bom sentido, ante avatares incontroláveis, como a gravidez que chega antes do casamento ou o rapaz jovem e musculoso que se enamora duma mulher madura. Enfim, gente moderna, mas não mais que isso, porque deslizam pela tela cenas de conservadorismo recalcitrante sobre a mulher. Assim, o casal estelar vai ver uma casa para morar, e no momento de discutir preço e condições, ela se retira e ele fica a sós com o vendedor. Na cena seguinte aparece anunciando a compra, enquanto ela toma um chá e cuida das crianças. Quando dois irmãos, dois amigos, têm que discutir um assunto importante, a mulher da casa se retira brevemente, para preparar-lhes uma merenda ou um refresco.

Não se discute sobre riqueza e pobreza na Vila dos Ventos: os refugiados recebem a ajuda duma ONG formada pelos abastados, e com isso já estamos bem. Em momentos dramáticos, quando uma tragédia está para se abater sobre os protagonistas, não falta um personagem que encomenda a Deus para ajeitar o assunto. E a ele se atribui toda felicidade: quando o casal estelar se casa, no brinde alguém exclama: “Graças ao Santíssimo”. Uns segundos antes eles saíram da igreja e os primeiros a apresentar cumprimentos são os militares, de baioneta calada.

E algo infalível em grande parte da televisão brasileira: ainda que 52,2% dos 3,1 milhões de habitantes do Rio Grande do Norte venham da mistura de raças, os três personagens principais são brancos, de máxima brancura, assim como os advogados, a maioria dos tenentes, o delegado de polícia. Mestiços e negros podem ser vistos, sim, trabalhando nas minas ou na pesca.

(*) Escritor e jornalista, presidente de Comunicadores da Argentina (Comuna).

Tradução: Jadson Oliveira

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