(Foto: Internet) |
“O infinito do social me chama.
Quem sabe se numa curva qualquer do acaso topo com uma Maria Boiadeira...”
Por Jadson Oliveira (jornalista/blogueiro) –
editor do blog Evidentemente, publicado em 08/03/2015
Ele
se dizia um rompedor. Tinha 35 anos quando empreendeu uma tremenda façanha. Deixou
seu povoado natal, Olhos d’Água de Antônio Francisco, perto de Seabra, na
Chapada Diamantina, interior da Bahia, rasgou mundo e foi bater, aos trancos e
barrancos, lá pras bandas de Lençóis, o celeiro mítico dos diamantes das
Lavras, uma lonjura nesse mundão de Deus.
E
não estava satisfeito. “Sou um rompedor”, disse batendo no peito com orgulho,
quando um conterrâneo o encontrou assim de repente, um acaso extraordinário, e
aventou a hipótese dele retornar ao lar paterno, “nosso Olhos d’Água tá lá de
braços abertos pra você, irmão”. “Sou um rompedor”, repetiu, “vou indo sempre
em frente, só vou parar lá pros lado de Itaberaba”. Isso era uma distância
enorme, como se fossem outros mundos, outras vidas, aventuras, temeridade.
“É
um visionário”, dizia o ainda relativamente jovem Fabrício d’Oliveira, meu tio,
rábula e líder político de Seabra, autodidata de muita sabedoria, quando lhe
falavam do destemido “rompedor”. Corri ao velho dicionário, um livro muito
gordo cheio de ilustrações comprado por meu pai em Salvador (“na Bahia”, como
se dizia antigamente), uma preciosidade. Mais ou menos assim: “Visionário, quem
tem ideias extravagantes, utopias, sonhador”. “Ah, pensei que era maluco”, fiquei
admirado e descobri uma palavra que passei a idolatrar: “utopia”.
“O
rompedor”, como comecei a chamá-lo, tanto que esqueci seu nome, já foi
personagem de livro, de autoria dum primo meu, Ivan, filho do citado Fabrício,
mais conhecido como Ivan Guanais, professor e advogado baiano que já ocupou
cargos importantes no Estado brasileiro. Mas até então a pequena parte da
história do “rompedor” (ou “visionário”) era pequena mesmo, irrelevante até, se
obscurecemos o seu lado político-social, como costuma acontecer, não por acaso,
quando se reporta a vida nas asas do establishment.
A
verdade é que havia uma faceta clandestina de sua vida que só se tornou
conhecida, ou imaginada, algumas décadas depois, a partir da divulgação de uns
manuscritos que teriam sido garimpados nos restos empoeirados de papéis,
supostamente pertencentes a uma velha biblioteca dum suposto guarda-livros dum
provável coronel das Lavras.
É uma “verdade”, melhor assim entre aspas, porque
recheada de “suposto” e “supostamente”. Mas é o que temos ou vislumbramos.
Num
dos tais manuscritos, que vinha a ser uma carta de amor, nosso aventureiro procurava persuadir a destinatária,
filha do coronel, sobre o teor de sua paixão, na medida em que não era
realmente compreendida porque seu compromisso maior era com “o social”. Ele
enfatizava esse “social”, falava, falava e acabava não dizendo nada, cheio de
evasivas estranhas – “quixotices”, diria um mais letrado -, e terminava não convencendo
a amada, que certamente sonhava outros sonhos de qualidade mais ordinária.
Pelo
menos é o que aparentava, a se deduzir de sua própria argumentação numa carta
posterior, onde ele, demonstrando já certo desencanto, dizia – em tom de
acusação – que a donzela amada não tinha “alma destemida” capaz de afrontar a
mediocridade cotidiana.
Emendava
com loas a uma tal Maria Boiadeira, natural do povoado de Parnaíba (hoje distrito
de Iraporanga, município de Iraquara, na Chapada), que teria abandonado seus
afazeres, parentes e aderentes e, montada no seu famoso cavalo baio, em
companhia de vaqueiros, tropeiros e outros viajantes da região das Lavras,
rompeu o mundo pelos lados das terras mato-grossenses e também pelas beiradas
do São Francisco. Exaltava especialmente as suas ideias “libertárias”, palavra
que soava revolucionária e, portanto, altamente subversiva naquelas paragens de
então.
À
guisa de despedida, dizendo-se com o peito rasgado de dor, nosso “rompedor”,
teimoso como uma mula, prometia continuar suas andanças, sempre em busca de
novos ares, novas terras e quiçá mares. Tinha rompantes poéticos: “O infinito
do social me chama. Quem sabe se numa curva qualquer do acaso topo com uma
Maria Boiadeira, que será minha companheira para o resto da vida”.
E
concluía meio melancólico, mas sempre exaltado: “Mais tarde, quando os
primeiros sinais do fim começarem a aparecer na pele, um carocinho aqui, uma
mancha ali, uma creca acolá, anunciando a aproximação inexorável da inominada,
então, feliz, poderei exclamar: valeu, vivi!”
E
concluo eu, o cronista: quando a notícia de sua morte chegou a Seabra (só três
dias depois chegaria a Olhos d’Água de Antônio Francisco), o já velho e sempre
sábio Fabrício d’Oliveira sentenciou, implacável: “Rompedor nada, era um
visionário”.
Comentários