(Ilustração: Arte de Fidel Nodal) |
“Em 1776, o grande país do Norte deixou
de ser uma colônia mais do império britânico. Horas depois dessa independência
decidiram se converter num império, algo que, como bem se sabe, não se consegue
com a persuasão e sim com a invasão...”
Por Vicente Battista (escritor argentino) - no jornal Página/12, edição impressa de 06/03/2015
Em 1973 as ruas de Santiago do Chile estavam convulsionadas. Em outubro
de 1972 os caminhoneiros tinham se declarado em greve, contribuindo desse modo para
o desabastecimento de produtos primários. Um desabastecimento que havia colocado
em marcha os grandes centros de distribuição, controlados por diversos setores
da burguesia comercial. Por aqueles dias as “respeitáveis” famílias dos bairros
altos de Santiago se manifestaram levando em suas mãos caçarolas vazias. Asseguravam,
compungidas, que não tinham nada para por nelas e à falta de alimentos bons sem
golpes, começaram a bater as caçarolas e a puro baticum fizeram pública a
insatisfação que lhes produzia o governo socialista de Salvador Allende. Golpeavam
as vasilhas não contra os desacertos desse governo, mas contra os acertos que
havia logrado. Em 6 de outubro, o senador Patricio Aylwin, em nome da instituição
e de seu partido, o Democrata Cristão, havia proclamado que Allende “violava todos
os compromissos contraídos”, a Câmara Alta qualificou o governo como “fora da
lei”. O alvoroço do Congresso não conseguiu destituí-lo.
As classes dominantes, esse pastel formado por um bom número de empresários
e latifundiários, com alguma talhada clerical e sindical, decidiram que não
bastava golpear caçarolas e se dirigiram, heroicos, a golpear as portas dos quartéis.
Os tanques saíram às ruas e se levou a cabo um sangrento golpe de estado com o
patriótico propósito de por fim a essa ditadura de papel, anunciada pelos
grandes meios de comunicação, e instaurar uma ditadura de verdade, celebrada
por esses mesmos meios. Salvador Allende foi atacado a tiros por defender um governo
democraticamente eleito, houve outros muitos assassinados, os que puderam se
esquivar da morte terminaram na prisão ou no exílio.
Tratava-se duma reprodução do que desde começos do século XX havia acontecido
na América Latina e continuaria acontecendo com aqueles mandatários ou mandatárias,
livremente eleitos, que se atreveram a torcer o rumo da agenda que, “desinteressada
e patrioticamente”, lhes apontavam os grandes grupos de poder. Argentina,
Brasil, Uruguai, Bolívia, Chile, Equador, Venezuela, Paraguai e Honduras decidiram
não seguir essa agenda. Os bate-caçarolas uma vez mais golpearam as portas das
Forças Armadas. Como ninguém lhes abriu, compreenderam que algo havia mudado: “Já
não há golpes militares, já não há golpes legislativos, agora há golpes judiciais”,
assinalou o presidente Correa. Os exaltados golpeadores não perderam o ânimo:
havia outras portas para golpear, menos castrenses ainda que igualmente
efetivas, assim lograram depor os governos do Paraguai e de Honduras. Continuavam
contando com o Grande Irmão que os protege, guia e vigia: os Estados Unidos da
América.
Em 1776, o grande país do Norte deixou de ser uma colônia mais do império
britânico. Horas depois dessa independência decidiram se converter num império,
algo que, como bem se sabe, não se consegue com a persuasão e sim com a invasão:
desde 1798 até hoje, os Estados Unidos da América invadiram um alarmante número de países e
interviram em mais de uma centena de conflitos bélicos no mundo inteiro. O
argumento ou, se se prefere, a desculpa foi, e continua sendo, preservar a paz
do território e proteger a vida dos cidadãos estadunidenses que aí vivem. Com esse
pretexto se fartaram de somar terra alheia à sua própria terra. Para nos circunscrever
exclusivamente à América Latina, basta recordar que em 1847 se apoderaram do
Texas, Califórnia, Nevada, Utah, Arizona, Novo México e uma parte do Colorado,
que até então pertenciam ao México, e que em 1898 anexaram Porto Rico como uma
estrela mais em sua bandeira.
Desejosos de manter a ordem no que, sem eufemismos, chamam de “quintal”,
alentaram todos os golpes civil-militares contra aqueles governos que se atreveram
a desobedecer a agenda marcada pelos sócios locais. Em 1930 apoiaram o
levantamento do general Uriburu, que pôs fim à presidência de Hipólito Yrigoyen
(na Argentina); em 1955 o porta-aviões Midway e outras naves estadunidenses
navegavam águas argentinas em apoio aos militares golpistas que derrocaram o
presidente Perón. Em 1966 não foi necessário recorrer às naves para consolidar o
golpe do general Onganía que colocaria fim ao governo de Illia. Em 14 de setembro
de 1970, Richard Nixon e Henry Kissinger, numa reunião secreta, que pouco depois
se tornou pública, determinaram qual política seguir a partir do triunfo de
Salvador Allende. Três anos mais tarde, precisamente em 11 de setembro de 1973,
o general Pinochet se apoderava do Chile.
Os diferentes governos dos Estados Unidos da América costumam admitir
todos e cada um dos descalabros que cometem. Os admitem muito depois de havê-los
executado. O fazem, dizem, para salvaguardar os sagrados valores da democracia e,
de passagem, ainda que não o digam, para alimentar a indústria do espetáculo. Os
assassinatos de Sacco e Vanzetti e do casal Rosenberg, para só dar dois exemplos,
se converteram em formidáveis filmes e notáveis peças teatrais. Algo parecido ao
ocorrido com o Chile e a ditadura de Pinochet e com outro montão de episódios
trágicos nos quais o grande país do norte teve incidência direta.
Hoje ressoa uma nova ameaça de golpe, apoiado em obediente silêncio pelos
mesmos que o negam a todo volume. Definitivamente, se trata dessa bipolaridade
política tão comum em alguns teóricos esquecidos e distraídos. Sustentam que é
um relato delirante falar de golpes com a participação da CIA e esboçam um sorriso
sarcástico cada vez que o dizem. Não lhes preocupa que todas estas suspeitas,
que começam a ser certezas, se convertam num exitoso filme de Hollywood, produzido
pelos mesmos acionistas do golpe triunfante.
Tradução: Jadson Oliveira
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