DOIS DIAS, UMA NOITE: A SOLIDÃO DO TRABALHADOR NO SÉCULO 21

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(Foto: Reprodução/Carta Maior)

O filme 'Dois dias, uma noite' mostra que a saída para a classe trabalhadora da Europa e do mundo ainda é esta: continuar lutando.

PorLéa Maria Aarão Reis, no portal Carta Maior, de 16/02/2015

Sandra é operária de uma fábrica, na Bélgica, é casada e tem dois filhos. Vem de uma licença médica por causa de uma depressão, obtida meses antes de começar a sua história neste belo filme dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, o Dois dias, uma noite. Nele, a cultuada francesa Marion Cotillard é indicada para ganhar um segundo Oscar de Melhor Atriz. Embora sua atuação seja tocante e empolgue, é o roteiro original de Deux jours, une nuit, dos Dardenne, inspirado em um fait divers como eles declararam em entrevista, que chama a atenção. É um roteiro excelente.

Sandra vive e trabalha em um país, a Bélgica, com alto índice de desemprego – cerca de 8%, o dobro dos 4,3% que tivemos no Brasil, ano passado. Isto significa que aqueles que estão empregados pisam em ovos para não serem despedidos - o que pode ocorrer a qualquer momento nesse tempo ‘austero’ que atinge em cheio (apenas) os trabalhadores e a pequena classe média.

Numa sexta-feira como outra qualquer, Sandra é demitida em um processo de ‘flexibilização’ no quadro de funcionários da fábrica. A empresa manipula e usa os seus próprios colegas para votar: ou eles recebem um bônus de mil euros e Sandra vai para a rua ou ela continua no grupo e eles ficam a ver navios. A maioria vota pelo bônus. Mas uma segunda votação é acertada com seu patrão. Mais um acordo indecente. Ele concede que haja uma nova votação na segunda-feira seguinte. Os colegas terão a chance de decidir, definitivamente, se abrem mão do bônus de mil euros oferecido pela empresa e a companheira mantém o emprego.

Sandra passa um fim de semana, dois dias e uma noite de mundo cão. Compungida, vai de porta em porta de suas casas tentando convencer os colegas a mudar o voto e reverter a aflitiva situação. O bem-estar básico da sua família, embora o marido esteja empregado, depende do salário dela. A nova rodada da segunda-feira decidirá o seu destino. A moça faz das tripas coração, engole qualquer resquício de amor próprio e vai à luta procurando manter a dignidade e a calma no meio de imensa tensão.

Dois Dias, Uma Noite discute a solidariedade individual da classe operária no mundo submisso dos que estão embaixo aos que se encontram no topo; um mundo submetido à ganância do capital internacional e à crueldade das direitas face às necessidades da classe trabalhadora. O filme fala de um mundo no qual o sindicalismo, o estado de bem estar e a social democracia europeia afrouxaram. Na história de Sandra não há sindicato ou instituição de classe que possa ajudá-la. Ela está sozinha.

Em um livro de sua autoria, Au dos de nos images (Atrás das nossas imagens), sobre o cinema que ele e o irmão praticam, Jean-Pierre sugere que “o trabalhador hoje se tornou uma pessoa solitária, membro de uma espécie em extinção.” E pergunta: “Será que seu desaparecimento deixará algum legado? E qual seria ele?”

Uma das questões a ser discutida é esta: a solidariedade ainda existe na classe operária, no plano individual? Ou é uma utopia? No cinema dos Dardenne há uma crença otimista: há uma saída. Mas neste momento a humanidade está rachada e isso aflora em seus também belos filmes anteriores: Rosetta e A Criança, ambos Palma de Ouro em Cannes, e em O Garoto de Bicicleta, de 2011.

Antes, a solidariedade poderia prevalecer, os Dardenne afirmam. Mas nos nossos tempos de crise do capitalismo tardio é a competitividade e o egoísmo que pautam as relações de trabalho. ”O mundo mudou muito nos últimos anos. A Europa tem saído às ruas para protestar pedindo empregos e transformações sociais. Nosso filme de agora ficou bem mais forte e mais atual."

Em Dois dias, uma noite, um dos colegas de Sandra mostra seu mal estar com o dilema em que se encontra. Protesta: ”Mas eu não tenho culpa que seja assim”. Ao que ela responde: “Nem eu!” Outro deles, quando encontrado, lamenta: “Eles nos jogam uns contra os outros.” Por covardia, omissão, medo e, sempre, por necessidade urgente – pagamento das tarifas de luz e de gás, uma pequena reforma na casa, o sustento dos filhos na escola e na universidade. Vários companheiros negam o voto a seu favor.

Dois detalhes importantes neste belo filme. Um deles: todos os do grupo precisam fazer biscates em fins de semana porque o salário do trabalho, já precário, não fecha o mês. Outro: o colega que acaba mudando o voto contra a permanência de Sandra e abre mão de seu bônus é o que talvez mais precise do dinheiro - o jovem imigrante africano cujo contrato de trabalho é temporário.

E o lembrete dirigido aos inocentes (?) que escreveram sobre ele minimizando e considerando exagerado o sofrimento de Sandra. Provável eles nunca terem provado o horror de ser apanhado na rede de tal jogo perverso. Pois saibam: no fim dos anos 50, o proprietário de um jornalão carioca em ascensão já usava, e com orgulho, a mesma estratégia da empresa belga de Sandra. Na sua redação jogava uns jornalistas contra os outros. “É a mesma prática da General Motors, nos Estados Unidos; aumenta a produtividade,” nos disse certa vez o patrão, sem qualquer pudor.

Sem sentimentalismo algum, em seu filme neorrealista quase um documentário – por sinal, esta é a origem dos seus autores-, os Dardenne mostram que a saída é esta: continuar lutando.

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