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Esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um
fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas
casas e as nossas instituições.
Por Boaventura de Sousa Santos, no portal Carta Maior, de 13/01/2015
O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas
do Charlie Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está
envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu
impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob
pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as escolas
dos nossos filhos, as nossas casas, as nossas instituições e as nossas
consciências. Eis algumas das pistas para tal análise.
A luta contra o terrorismo, tortura e democracia.
Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie
Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados têm vindo a
travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema
agressividade do Ocidente tem causado a morte de muito milhares de civis
inocentes (quase todos muçulmanos) e têm sujeitado a níveis de tortura
de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as
suspeitas são meramente especulativas, como consta do recente relatório
presente ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos
jovens islâmicos radicais declaram que a sua radicalização nasceu da
revolta contra tanta violência impune.
Perante isto, devemos
refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar a
seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é agora demasiado
patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade
constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não
declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e
julgados, devem ser abatidos, que este fato não representa
aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos
num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela na
Europa? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou o Syriza na
Grécia.
A liberdade de expressão. É um bem precioso mas
tem limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos
por aqueles que defendem a liberdade sem limites sempre que é a "sua"
liberdade a sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se em Inglaterra
um manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser
preso; em França, as mulheres islâmicas não podem usar o hijab; em 2008
o cartoonista Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter
escrito uma crónica alegadamente antissemita. Isto significa que os
limites existem, mas são diferentes para diferentes grupos de interesse.
Por exemplo, na América Latina, os grandes media, controlados por
famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais clamam pela
liberdade de expressão sem limites para insultar os governos
progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo
bem-estar dos mais pobres.
Aparentemente, o Charlie Hebdo não
reconhecia limites para insultar os muçulmanos, mesmo que muitos dos
cartoons fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e
anti-imigrante que avassala a França e a Europa em geral. Para além de
muitos cartoons com o Profeta em poses pornográficas, um deles, bem
aproveitado pela extrema-direita, mostrava um conjunto de mulheres
muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram,
que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o
apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o islão, as
mulheres e o estado de bem-estar social. Obviamente, que, ao longo dos
anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por
esta linha editorial, mas foi igualmente imediato o seu repúdio por
este crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e
assimetrias na vida vivida dos valores que alguns creem ser universais.
A tolerância e os "valores ocidentais".
O contexto em que o crime ocorreu é dominado por duas correntes de
opinião, nenhuma delas favorável à construção de uma Europa inclusiva e
intercultural. A mais radical é frontalmente islamofóbica e
anti-imigrante. É a linha dura da extrema direita em toda a Europa e da
direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas (o caso de
Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da
civilização europeia estão entre "nós", odeiam-nos, têm os nossos
passaportes, e a situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A
pulsão anti-imigrante é evidente. A outra corrente é a da tolerância.
Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas temos de
as "aguentar", até porque nos são uteis; no entanto, só o devemos fazer
se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o que são
os "valores ocidentais"?
Depois de muitos séculos de atrocidades
cometidas em nome destes valores dentro e fora da Europa--da violência
colonial às duas guerras mundiais--exige-se algum cuidado e muita
reflexão sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os
contextos, ora se afirmam uns ora se afirmam outros. Por exemplo,
ninguém põe hoje em causa o valor da liberdade, mas já o mesmo não se
pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes
dois valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a
Europa democrática depois de segunda guerra mundial. No entanto, nos
últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de
integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos
conservadores e é hoje concebida como um luxo inacessível para os
partidos do chamado "arco da governabilidade". A crise social causada
pela erosão da proteção social e pelo aumento do desemprego, sobretudo
entre jovens, não será lenha para o fogo do radicalismo por parte dos
jovens que, além do desemprego, sofrem a discriminação étnico-religiosa?
O choque de fanatismos, não de civilizações.
Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem
as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de
fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem
mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus
choques estiveram relacionados com interesses económicos e políticos
que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos.
Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da
Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras
religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão
pacífica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de
membros da minoria tamil do Sri Lanka; do mesmo modo, os
fundamentalistas hindus massacraram as populações muçulmanas de Gujarat
em 2003 e o eventual maior acesso ao poder que terão conquistado
recentemente com a vitória do Presidente Modi faz prever o pior; é
também em nome da religião que Israel continua a impune limpeza étnica
da Palestina e que o chamado califado massacra populações muçulmanas na
Síria e no Iraque.
A defesa da laicidade sem limites numa Europa
intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor,
será afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opõem-se
ou articulam-se? Quais as relações entre os jihadistas e os serviços
secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do Emirato Islâmico,
que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade quando lutavam
contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirato Islâmico
seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos
aliados do Ocidente? Uma coisa é certa, pelo menos na última década, a
esmagadora maioria das vítimas de todos os fanatismos (incluindo o
islâmico) são populações muçulmanas não fanáticas.
O valor da vida.
A repulsa total e incondicional que os europeus sentem perante estas
mortes devem-nos fazer pensar por que razão não sentem a mesma repulsa
perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em
resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a
tragédia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Yemen
num atentado bombista. No verão passado, a invasão israelita causou a
morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e 500
crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por
defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em
Ayotzinapa. Certamente que a diferença na reação não pode estar baseada
na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale
mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de
culturas assentes noutras religiões ou regiões. Será então porque estes
últimos estão mais longe dos europeus ou são pior conhecidos por eles?
Mas o mandato cristão de amar o próximo permite tais distinções? Será
porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o
sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de
fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?
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