Lula e Dilma festejam a vitória: segundo o articulista, "passado o risco eleitoral, adeus aos compromissos com a esquerda e com os movimentos sociais populares autênticos". |
A
esquerda precisa dar um passo adiante, livrar-se dessa incômoda extorsão
praticada a cada eleição, por uma suposta esquerda que se alia na maior parte
do tempo com a direita, age igual à direita e, só nos momentos eleitorais,
evoca sentimentos racionais e emocionais da esquerda para socorrer o seu
projeto de poder ameaçado por algo mais à direita ainda.
Por Hamilton Octavio de Souza (jornalista e
professor), no Correio da Cidadania,
de 04/11/2014
Dilma Rousseff foi reeleita
presidente da República com o apoio de 38% do eleitorado. De um total de
142.822.046 eleitores, 54.501.118 votaram nela. A maioria, 62% dos eleitores,
não votou nela. Ou votou em Aécio Neves (51.041.155), ou em branco (1.921.819),
ou anulou (5.219.787), ou simplesmente deixou de votar. A abstenção chegou a
21,1% do eleitorado, mais de 30 milhões não se manifestaram nas urnas. Assim, o
bloco dos que não se comprometeram com as duas candidaturas do 2º turno atinge
27,4% do eleitorado, o que corresponde a um total de 39.133.228 eleitores. É
muita gente que ficou de fora da escolha presidencial.
Os números falam por si. A
presidente, o seu partido e a coligação eleitoral não contam, pelo menos
expressamente, com o respaldo da maioria dos brasileiros. A oposição de
direita, mais identificada com o discurso ortodoxo do neoliberalismo e mais
conservadora na visão moralista que emana das elites e das classes médias,
praticamente dividiu o eleitorado, ultrapassou os 50 milhões de votos. A se
considerar a direita que integra a própria coligação vencedora, que está no
PMDB, PP, PR, PSD, PRB etc., e que nas questões do dia a dia cerra fileiras com
a oposição de direita (PSDB, DEM, PTB etc.), a reeleição de Dilma acaba sendo
um grande cavalo de Tróia contra as forças que desejam as transformações
estruturais no país.
Lula e os marqueteiros petistas
podem até mobilizar as torcidas organizadas na luta dos pobres contra os ricos,
dos assistidos contra o abandono social, dos progressistas contra o retrocesso
conservador, do Estado contra o mercado, da difusa esquerda petista contra o
balaio da direita. Mas, na verdade, no bloco liderado pelo PT estão também os
representantes do capital, as grandes empresas, os banqueiros e o agronegócio;
estão as velhas oligarquias entranhadas nos estados e municípios, aquelas que
reproduzem as práticas seculares de oferecer os currais eleitorais em troca dos
favores patrocinados pelo Estado. Desnecessário citar a longa lista de caciques
e coronéis que contribuíram triunfalmente para a vitória da Dilma e que, agora,
irão exigir a contrapartida.
Mais uma vez os trabalhadores, os
movimentos sociais autênticos e a juventude inconformada foram sensibilizados a
dar sangue, suor e lágrimas para barrar o retrocesso político e o avanço da
direita. Mais uma vez a mesma ladainha de outras eleições surtiu efeito para
impedir que o povão deixe de ser contemplado com Bolsa Família, Prouni, Minha
Casa Minha Vida, Mais Médicos. A consciência dos que são solidários com os mais
pobres falou mais alto. A consciência de esquerda, inclusive dos que já
desistiram do PT há muito tempo, foi atingida pela ameaça aterrorizadora da
volta dos privatistas que escancararam as portas do país para a exclusão social
e a super-exploração do trabalho.
Muitos setores da esquerda que
não acreditam nem em Dilma e nem no resgate do PT para o campo da esquerda
acabaram por votar na Dilma acreditando estar votando contra retorno ao
passado, contra os fantasmas que rondam a incipiente democracia brasileira.
Esses eleitores sensíveis ao
significado histórico da esquerda precisam escapar da armadilha e da chantagem
se não quiserem repetir o gesto, mecanicamente, pela eternidade. Fantasmas
verdadeiros, fantasmas criados e fantasmas realimentados sempre estarão à espreita
da luta dos trabalhadores e do povo.
A esquerda precisa dar um passo
adiante, livrar-se dessa incômoda extorsão praticada a cada eleição, por uma
suposta esquerda que se alia na maior parte do tempo com a direita, age igual à
direita e, só nos momentos eleitorais, evoca sentimentos racionais e emocionais
da esquerda para socorrer o seu projeto de poder ameaçado por algo mais à
direita ainda. Passado o risco eleitoral, adeus aos compromissos com a esquerda
e com os movimentos sociais populares autênticos.
No primeiro governo Lula, a
chantagem em cima dos setores de esquerda e dos movimentos sociais combativos
utilizou o argumento de que se tratava de um governo em disputa, que era
preciso atuar por dentro, apoiá-lo, para tentar conquistar uma hegemonia de
esquerda no governo. Muita gente bem intencionada e de boa fé acreditou mesmo
que a disputa era um campo aberto que poderia favorecer as forças empenhadas
nas transformações, nas reformas estruturais e nas grandes mudanças demandadas
pelos trabalhadores e a maioria do povo.
Não funcionou, o governo ficou
empacado nas arapucas da governabilidade e afundou no mensalão, de onde saiu
com nova guinada para a direita. Vale lembrar que em 2005 Lula trocou Zé Dirceu
por Dilma, na Casa Civil; Eduardo Campos por Sérgio Resende, na Ciência e
Tecnologia; Olívio Dutra por Márcio Fortes, no Ministério das Cidades, entre
outros.
No segundo mandato Lula, os
programas sociais asseguraram apoio popular ao governo porque milhões de
pessoas deixaram a linha da miséria. Os programas sociais garantiram a eleição
da Dilma em 2010, ao mesmo tempo em que o governo aprofundou o atendimento das
demandas do capital, com juro em patamar de rentabilidade para os financistas e
especuladores; novas privatizações de estradas, portos e aeroportos; dinheiro
subsidiado do BNDES para grandes grupos empresariais; desonerações de impostos
para vários setores da economia; incentivos ao crédito e ao consumo; câmbio
favorável às importações de manufaturados. Tal receita inviabilizou o programa
da direita na disputa eleitoral e deu respaldo para o primeiro governo Dilma.
Agora as faturas do segundo
governo Dilma são bem maiores, seja para assegurar a confiança do capital
(precisa resolver o desafio de conciliar a satisfação dos rentistas e dos
setores industriais produtivos, dos investidores estrangeiros e do
desenvolvimento nacional, e do câmbio ideal para importadores e exportadores),
seja para construir um programa de agrado dos aliados (PMDB, PSD, PR, PRB),
seja para atender as demandas sociais e populares dos setores que apoiaram a
candidata do PT contra a “ameaça da direita”, e também dos setores combativos
dos movimentos populares e das esquerdas que não se deixaram levar pelo canto
de sereia do lulismo e do dilmismo. Todos, movimentos governistas e oposições
de esquerda, tendem a ganhar as ruas para cobrar avanços sociais efetivos e
concretos.
Como se vê, a equação do próximo
governo não está nada fácil. Isso sem contar as disputas internas por cargos
entre os partidos aliados, as explosões das ambições pessoais, a indicação de
ministérios chave para o modelo econômico, as investigações de corrupção na
Petrobras e outros casos pendentes que devem perturbar a condução do governo.
Além disso, o Lula já começou sua campanha presidencial para 2018, o que será
mais um fator perturbador no segundo governo Dilma, pois tende a agitar as
torcidas organizadas e a acirrar as ações das oposições, tanto à direita quanto
à esquerda.
Tudo indica que o país viverá um período de muita agitação social. A disputa maior não estará nos escaninhos institucionais. Estará nas ruas.
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