A
famigerada Escola de Mecânica da Armada (Marinha) - ESMA (Foto: DyN/Página/12)
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“É verdade que você saía com o Tigre Acosta? (conhecido torturador argentino)”. Houve um silêncio sólido, um prender de respiração de todos os que estavam no estúdio.
–Como assim “saía”?
–Bem... – recuou –. Se é verdade que saíam para jantar, isso é o que as pessoas dizem...
Nenhuma de nós tinha possibilidade de resistir, estávamos sob ameaça constante de morte num campo de concentração. Estávamos desaparecidas...
Queríamos ser mártires e não prostitutas.
Por Miriam Lewin, no jornal argentino Página/12, edição de 05/05/2014 (por ser muito extenso para os
padrões deste blog, vai dividido em duas partes; a primeira foi postada no dia
26/agosto)
(Continuação)
–É verdade, nós mesmas o relatamos no livro ‘Esse Inferno’ que escrevemos sobre o que vivemos no campo. Nos tiravam para jantar. Não saíamos por nossos próprios meios. Não tínhamos direito de recusar. Éramos prisioneiras. Vinham nos buscar os guardas em plena noite e nos levavam. Uma companheira, Cristina Aldini, o Tigre Acosta a levou para dançar em Mau Mau depois do assassinato de seu marido. Que os assassinos de seu marido levem uma mulher para dançar num local da moda me pergunto se não é uma forma refinada de tortura. Para Cristina um oficial da ESMA lhe levou a aliança de seu esposo, Alejo Mallea, a seu beliche em Capucha, onde estava presa, para mostrar que o haviam assassinado. Lhe perguntou se ela queria ver o cadáver. Cristina a princípio duvidou, mas depois aceitou porque pensou que, do contrário, sempre ia ficar na incerteza. Quando o viu, tinha dois tiros no rosto. Um foi o tiro de misericórdia, entre as duas sobrancelhas. Ele tinha sido executado.
Mirtha se sentiu em falta. Olhou para trás das câmeras, como buscando apoio.
–Bem, eu tenho que perguntar...
Ninguém respondeu.
–Ou pega mal que pergunte? – disse, como a ponto de choramingar, ensaiando uma cara angelical.
Quando tudo terminou, me acompanhou até a porta uma produtora.
–Não sei como te pedir desculpas – me disse, respirando forte e sacudindo a cabeça. Me deu a impressão de que a ela também lhe havia doído. Era uma mulher da minha idade. Parecia abatida, indignada, envergonhada. Talvez tivesse algum parente ou amigo desaparecido, pensei.
Esse “saía” de Mirtha encerrava um significado concreto. Tinha razão em se surpreender pela reprovação de sua claque. Provavelmente Mirtha encarnava o pensamento de milhares de pessoas, essas que teriam querido perguntar como ela, assim, elipticamente, se eu havia me salvado por dormir com o chefe do grupo de tarefas (grupo encarregado de diligências e torturas). Porque alguma explicação tinha que haver por eu ter passado de encapuzada no campo de concentração a convidada à mesa da diva. E sua pergunta implicava uma condenação, uma sentença que nesse momento eu não soube desarticular contra argumentando, provocando-a como ela me provocava, a partir de sua pretendida ingenuidade informada. Dizendo, por exemplo: “Não, não dormi com o Tigre Acosta, porém se o tivesse feito para salvar minha vida, então? Quem poderia me julgar? Quem pode assegurar o que é que teria feito se tivesse estado em meu lugar?”.
Nenhuma de nós tinha possibilidade de resistir, estávamos sob ameaça constante de morte num campo de concentração. Estávamos desaparecidas, sem direitos, inermes, arrasada nossa subjetividade. Seu domínio sobre nós era absoluto. Não podíamos tomar nenhuma decisão, isso era absolutamente inimaginável. Deles dependia que comêssemos, que dormíssemos, que respirássemos. Eles eram nossos donos absolutos. Não ficava resquício algum para nosso livre arbítrio. Mas se tivesse existido? Se o olhar lascivo deles sobre nossos corpos tivesse sido usado por nós como uma arma contra eles, um resquício de força em nossa extrema fraqueza, teria sido correto nos condenar socialmente?
Como mulheres, a utilização de nossos corpos ou o desejo que despertamos no outro como instrumento de manipulação ou de salvação é condenável. Não acontece o mesmo com os homens.
(...)
As mulheres sobreviventes sofremos duplamente o estigma.
A hipótese geral era que, se estávamos vivas, éramos delatoras e, ademais, prostitutas. A única possibilidade de que as sobreviventes houvéssemos conseguido sair de um campo de concentração era através da entrega de dados na tortura e, ainda mais, por meio de uma transação que se considerava ainda mais infame e que envolvia nosso corpo.
Nós havíamos dormido com os repressores. E não éramos vítimas, mas sim que havia existido uma alta cota de vontade própria: nos havíamos entregado de bom grado à lascívia de nossos captores quando havíamos podido escolher não fazê-lo. Havíamos traído duplamente nosso mandato como mulheres: o da sociedade em geral e o da organização na qual militávamos. Não nos via como vítimas, mas como donas dum livre arbítrio na verdade improvável.
Resulta impossível explicar por que os que nos julgavam, sem ter vivido as condições que se sofriam num centro clandestino de detenção, supunham que as mulheres tínhamos o poder de resistir à violência sexual, aos assédios dos repressores e podíamos preservar “o altar” de nossos corpos impoluto.
As mulheres tínhamos um tesouro que guardar, uma pureza que resguardar, um mandato que obedecer. Nos haviam convencido de que era assim.
Eu não escapava desse mandato. Por isso, o total rechaço que me provocava a conduta da mulher de meu assistente (meu “responsável” na organização em que militava). Nunca me ocorreu que podia usar a atração que provocava em seu captor para conseguir o precioso tesouro do contato telefônico com sua filhinha, para aliviar sua dor de mãe separada de sua filha. Tampouco que não havia tido o poder de resistir aos assédios sexuais de seu sequestrador, desaparecida e privada de todos seus direitos, em mãos de um grupo de ilegais que dispunha de sua vida e de seu corpo. Do mesmo modo que não havia podido se preservar das lacerações do choque elétrico. Para mim, para a Petisa, para todos, essa moça era a encarnação do pior, do mais repulsivo. Sentíamos mais medo de nos converter nisso do que de nos imolar. Queríamos ser mártires e não prostitutas.
Não me era possível terminar este livro, que idealizei com minha amiga e companheira Olga, sem incluir uma passagem de minha própria história que me atormentou durante anos. Não podia, não teria sido honesto, expor as experiências de outras mulheres e calar sobre a minha. É na realidade parte de um romance autobiográfico que comecei a escrever faz um tempo, precisamente para clarificar dentro de minha mente o que havia atravessado. Por isso, no final de ‘Putas e guerrilheiras’, relato o vivido em ‘La Casa de la CIA’.
Tradução: Jadson Oliveira
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