DA CONADEP AOS JULGAMENTOS DOS REPRESSORES DA DITADURA ARGENTINA: UM PROCESSO HISTÓRICO DE VERDADE E JUSTIÇA
(Foto: Internet) |
A trajetória cumprida pela Conadep,
uma experiência pioneira no mundo, põe em evidência o enlace entre as
diferentes estratégias de construção da verdade e da justiça na Argentina e seu
impacto na consolidação duma memória social condenatória dos crimes.
Por Gastón Chillier (*), no jornal argentino Página/12, edição de 20/09/2014
Hoje
(20/setembro) completam 30 anos da entrega do Informe Final da Conadep
(Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), um dos ritos do processo
de verdade e justiça no nosso país. A solidez do conhecimento acumulado pela
Conadep sobre o funcionamento do terrorismo de Estado permitiu fundamentar a
acusação do Julgamento das Juntas e sua contribuição se estende aos julgamentos
que se desenrolam na atualidade. As tramas cívico-militares que hoje são
investigadas – integradas por membros do clero, juízes e promotores, servidores
do Poder Executivo e empresários – estão assinaladas no Nunca Mais (nome do
relatório elaborado pela Conadep). A trajetória cumprida pela Conadep põe em
evidência o enlace entre as diferentes estratégias de construção da verdade e da
justiça na Argentina e seu impacto na consolidação duma memória social condenatória
dos crimes. Ao mesmo tempo, é uma experiência pioneira que mais tarde seguiram
outros países do mundo em seu intento de elucidar passados traumáticos.
Quando em abril de 1983, o então presidente de fato Reynaldo Bignone (último general ditador) apresentou o Documento final da Junta Militar sobre a guerra contra a subversão e o terrorismo, e uns meses depois estampou sua assinatura na denominada Lei de Auto-anistia ficou claro que a estratégia escolhida pelas Forças Armadas e seus cúmplices civis era a negação de todo o ocorrido e a auto-absolvição. Nesse momento, um conjunto de organismos de direitos humanos, entre os quais se encontrava o CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), institucionalizou pela primeira vez a demanda por verdade e justiça: pediram que se constituísse uma Comissão Bicameral com faculdades para investigar as violações massivas aos direitos humanos. Os organismos se propunham comprometer por antecipação a classe política em geral e o governo que seria eleito em dezembro desse ano. Em paralelo, constituíram a Comissão Técnica de Recopilação de Dados com o objetivo de reunir e sistematizar toda a informação que o movimento dos direitos humanos havia acumulado. Ambas iniciativas estão na árvore genealógica da Conadep.
Já em democracia, a maior parte dos organismos de direitos humanos mantivemos a reivindicação duma Comissão Bicameral capaz de garantir maior respaldo político e faculdades mais amplas para a investigação, mas acompanhamos – ainda que sem nos integrar – o trabalho da Conadep: aportamos os arquivos do CELS e da APDH (Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos) e a experiência no trabalho documental durante a ditadura, somamos elementos probatórios, sugerimos aos familiares de detidos-desaparecidos que fizessem o mesmo e buscamos incidir na difusão, disponibilidade e destino da informação recopilada.
O trabalho inicial da Conadep se organizou em torno dos testemunhos e documentos que os sobreviventes e familiares das vítimas haviam aportado aos organismos. No transcurso de sua atividade, a Comissão ampliou esse acervo, aprofundou a investigação, abriu um espaço no que mais pessoas deram seus testemunhos e visitou os lugares de detenção. Seu trabalho permitiu uma passagem fundamental: deu caráter de documento oficial à informação reunida com esforço pelas organizações de direitos humanos em plena ditadura e outorgou reconhecimento social e status jurídico às vítimas. Este aporte resultou crucial para processar penalmente os crimes, elaborar as políticas de reparação para as vítimas e reconstruir a verdade histórica sobre o terrorismo de Estado. Mais além deste reconhecimento indispensável, os organismos sempre sustentamos a exigência de reconstruir a verdade a partir de bases mais amplas que não dependam somente do testemunho das vítimas nem da boa vontade dos perpetradores, mas sim de políticas ativas orientadas a encontrar registros sobre o funcionamento da repressão. Ações que requerem a decisão política do Estado em seu conjunto, o qual sempre consideramos responsável em primeira instância de prover informação à sociedade sobre cada uma das pessoas desaparecidas.
O fato de que a informação recopilada pela Comissão siga sendo hoje uma referência fundamental, para o processo de justiça e para as políticas públicas de direitos humanos, põe em relevo tanto o valor do trabalho realizado como a continuidade dum processo histórico, no qual as estratégias da verdade – como a Conadep – e as da justiça se fortaleceram mutuamente e deram lugar a uma experiência coletiva única que é hoje um exemplo para o mundo.
* Diretor executivo do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS).
Tradução: Jadson Oliveira
Observação do Evidentemente: Quando o Brasil vai formar e consolidar uma "memória social condenatória dos crimes" da ditadura? Dá pra sentir o contraste entre as duas realidades (a nossa e a dos argentinos) lendo este artigo e o postado logo abaixo: O Brasil e o direito de resistência.
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