“BEM-VINDA ANA À SUA LIBERDADE”: CASO DA NETA 115 MOSTRA QUE BUSCA PELA IDENTIDADE NÃO OBEDECE FRONTEIRAS



Avós comemoram primeira neta encontrada na Europa: Estela de Carlotto, presidente da entidade, na frente sentada com o microfone (Foto: Telám/Opera Mundi)
Neta da primeira presidente das Avós da Praça de Maio mora na Europa e doou material genético de forma voluntária, no consulado do país onde vive
 
Por Aline Gatto Boueri - de Buenos Aires – reproduzido do portal Opera Mundi, de 23/08/2014

Ninguém imaginava que seria tão rápido. “Até o próximo neto”, se despediu Estela de Carlotto, há duas semanas, ao finalizar a coletiva na que anunciou que havia encontrado “Guido”, nome dado por sua filha Laura – sequestrada pela ditadura – a seu bebê. O rapaz, que recebeu o nome de Ignácio dos pais adotivos, se tornou o 114º neto identificado pelas Avós da Praça de Maio.

Mas a espera de décadas dessas avós em busca de seus netos, apreendidos pela ditadura militar argentina, parece estar diminuindo. Nesta sexta-feira (22/08), na mesma sala de imprensa da sede das "Abuelas", foi anunciada a descoberta de Ana Libertad, neta da primeira presidente da organização, Alicia “Licha” De La Cuadra. Infelizmente, Alicia não conseguiu desfrutar do emocionante encontro, assim como aconteceu há poucos dias entre Estela e Guido. Ela faleceu em 2008.

A investigação sobre uma pista da identidade de Ana começou com um e-mail anônimo enviado em 2010. “Sentimos muito que Licha não esteja presente neste momento”, disse Estela, emocionada. Das três mulheres que estiveram à frente das Avós da Praça de Maio, duas puderam elucidar o paradeiro de seus netos no mesmo mês de agosto de 2014, com 15 dias de diferença. Chicha Mariani, hoje afastada da organização, ainda busca sua neta, Clara Anahí.


Licha teve dois filhos, dois genros e uma neta desaparecidos. Seus outros três filhos se exilaram na Europa. Elena De La Cuadra e Héctor Baratti, pais de Ana Libertad, foram sequestrados em fevereiro de 1977 pela polícia bonaerense, na cidade de La Plata. Ambos militavam no PCML (Partido Comunista Marxista Leninista) e Ana nasceu na maternidade clandestina da delegacia n° 5 da mesma cidade.

Leonardo Fossati, outro neto reencontrado pelas Avós, lembrou que ele também nasceu na mesma delegacia, que ainda hoje funciona. “Esperamos que até o fim do ano atendam nosso pedido de que o lugar seja fechado e transformado em um centro de memória”, afirmou Fossati.

Avós Argentinas

Avós Argentinas com Netinhos Desaparecidos foi o primeiro nome da associação que hoje já encontrou 115 pessoas nascidas em cativeiro ou sequestradas pelas forças de repressão da ditadura, quando crianças, junto a seus pais. Alicia dizia que o “Argentinas” era usado para esclarecer que seus netos “poderiam estar em qualquer lugar”.


“Nós sempre pensamos que algum neto deveria estar na Europa. E bem, veja só”, comentou a Opera Mundi Claudia Carlotto, coordenadora da Conadi (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade) e filha da presidente das Avós, sobre Ana Libertad.

O caso da jovem foi o primeiro em que um exame de DNA com mostras de sangue extraídas fora do país deu positivo. A moça, que mora na Europa, doou material genético voluntariamente, quando foi informada de que podia ser filha de desaparecidos. A coleta aconteceu no consulado argentino do país onde vive Ana, em abril deste ano, três meses antes das Avós anunciarem que haviam encontrado o neto de Estela.


 
Igreja Católica e ditadura 

A aparição de Ana reacendeu o debate sobre a participação da Igreja Católica nos crimes cometidos pela última ditadura argentina (1976-1983). Sua avó, que morreu aos 93 anos sem perder a esperança de encontrá-la, buscou contatos na Igreja para por um fim à angústia.

Segundo relato de Estela De La Cuadra, tia de Ana Libertad, o contato com um padre jesuíta espanhol levou a família a Jorge Bergoglio – atualmente Papa Francisco –, que intercedeu pela bebê e fracassou: a resposta que a família De La Cuadra recebeu foi que “a menina está com uma boa família.”

Estela contemporizou o conflito com a Igreja e afirmou que hoje há maior colaboração. A presidente das Avós da Praça de Maio lembrou que, desde que ela foi recebida pelo papa, há maior disposição em colaborar.

No entanto, antes de chegar ao Vaticano, Francisco não forneceu à Justiça informações relevantes sobre o paradeiro de desaparecidos nem sobre o grau de envolvimento da Igreja Católica local nos crimes contra a humanidade.

Efeito Guido

O “efeito Guido”, que gerou um aumento no número de pessoas que se apresentam espontaneamente com dúvidas sobre sua identidade, não teve relação direta com a identificação de Ana Libertad, mas alimentou as esperanças de que 2014 traga ainda mais surpresas.

“Não só aqui houve maior procura. Em todos os consulados com que trabalhamos, de vários países do mundo, também aumentou o número de pessoas que quer resolver as dúvidas que têm sobre sua identidade”, contou Claudia Carlotto. 
 
A coletiva sobre Ana Libertad teve menor repercussão. No encontro em que Guido foi apresentado, havia muitos jornalistas e agitação, em grande parte pelo protagonismo de Estela. Ela, na ocasião, lamentou o vazamento à imprensa de informações sigilosas sobre a identidade do neto e pediu, com ênfase, mais responsabilidade na cobertura desses casos.

No início do encontro de ontem, Estela leu a comovente mensagem oficial das Avós, que terminava:“Elena e Héctor chamaram sua filha de Ana Libertad. Hoje ela conseguiu adquirir esse bem tão precioso que seus pais lhe desejaram com seu nome: bem-vinda Ana à sua liberdade”. Ao seu lado, estavam as fotos da família de "Licha".

“Até o próximo neto”, se despediu, confiante, mais uma vez.

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