Há umas duas semanas, Guido bateu à porta da sede das Avós da Praça de Maio. Sabia que aqueles que considerava seus pais biológicos não o eram.
Por Victoria Ginzberg - reproduzido do portal Carta Maior, de 06/08/2014Celebrou cada encontro como se fosse próprio. Ficava angustiada quando as histórias se complicavam e se alegrava quando vencia novamente. Todos os netos foram um pouco dela. Por isso, ontem, seu neto foi um pouco de todos. Estela Barnes de Carlotto, a presidenta das Avós da Praça de Maio, logo poderá abraçar Guido, o filho que sua filha Laura teve em junho de 1978, enquanto esteve sequestrada. “Encontramos o seu neto”, disse ontem ao meio dia, no juizado, a juíza María Servini de Cubría – muito embora, na realidade, Guido tenha se encontrado sozinho, graças aos anos de trabalho, tenacidade e criatividade das Avós. Porque, no final, Guido também procurou por Estela.
Há uns quinze anos, quando as Avós começaram a entender que os netos pelos quais procuravam haviam deixado de ser crianças, que eram adolescentes ou adultos, elas ampliaram sua estratégia. Já não se tratava de espiá-los na porta da escola, mas de interpelá-los. “Vocês sabem quem são?” foi a frase que escolheram para abrir essa nova etapa. E a escreveram em uma faixa que colocaram em um recital de rock que organizaram.
Em junho, um jovem mandou um e-mail às Avós da Praça de Maio com essa dúvida na cabeça. Há umas duas semanas, bateu à porta da sede da instituição. Sabia que aqueles que considerava seus pais biológicos não o eram. Havia confessado isso a alguém próximo à família. Suspeitava que podia ser filho de desaparecidos. Enviaram-no à Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi), dirigida por Claudia Carlotto. Seu sangue foi cruzado com as amostras do Banco Nacional de Dados Genéticos, e ontem os resultados ficaram prontos: seus pais eram Laura Carlotto e Walmir Oscar Montoya. O dado de filiação paterna tem sua história, já que a família Carlotto não estava certa de quem era o parceiro de Claudia – por conta da militância clandestina de ambos, seu nome não era conhecido. A aparição de Guido, portanto, também permitiu chegar a essa certeza.
A informação da prova de DNA não chegou à Conadi, mas foi levada aos tribunais, pois ali havia uma causa aberta por conta do desaparecimento de Laura e da apropriação de Guido. Dessa forma, Servini de Cubría foi quem deu a notícia mais esperada e, ao mesmo tempo, mais inesperada a Estela. Quando estava saindo do juizado, recebeu uma ligação da presidenta Cristina Fernández de Kirchner. “Diga que é verdade”, disse CFK. “Choramos juntas”, Estela contou depois.
Na sede das Abuelas, sua segunda casa, ela se juntou aos seus filhos Claudia, Kibo e Remo, seus outros treze netos e seus dois bisnetos. Logo foi chegando sua segunda família: suas companheiras, colaboradores, amigos, netos encontrados e irmãos que ainda procuravam seus irmãos. “É artista e vive no campo, e disseram que se parecia comigo”, contava Estela, entre abraços. Estava contente e surpresa porque Guido havia participado do circuito Música pela Identidade, organizado pelas Avós E também agradecida porque estava vivo, porque estava saudável, porque estava perto. Em pouco tempo, o lugar ficou cheio de jornalistas, fotógrafos e câmeras de TV. Para esse momento, já se sabia que Guido fora criado em Olavarría e crescido com o nome de Ignacio Hurban – dados que foram divulgados pelo juizado, mas que as Avós e a família Carlotto tinham tentado preservar para que não houvesse um assédio sobre o jovem e, assim, ele tivesse tempo de processar a notícia que havia mudado sua vida.
“Por sorte, fiz um exame cardíaco há pouco tempo. E está tudo bem. Agora, quero tocá-lo, olhá-lo nos olhos. Agora, tenho meus 14 netos, a cadeira vazia já não estará vazia e os porta-retratos vários terão a imagem dele. Eu pude vê-lo e ele é bonito. É um bom menino. Cumpriu-se o que nós dissemos às Abuelas, que eles vão nos procurar”, disse Estela durante a coletiva de imprensa realizada na sede da associação à tarde. Ali estava Estela com uma saia escocesa, um suéter laranja e um casaco marrom, a roupa que vestia de manhã, quando ainda não imaginava que esse dia seria diferente de todos.
“Quero compartilhar essa alegria enorme que a vida nos deu hoje, a de encontrar o que procurei e procuramos durante tantos anos. Que Laura possa sorrir lá do céu. Porque ela o sabia antes do que eu: 'Minha mãe não vai se esquecer do que me fizeram e vai persegui-los'”, disse Estela ao recordar uma frase que sua filha disse a seus assassinos antes de saber que sua mãe se transformaria em um emblema na luta contra a impunidade, pela memória e pela justiça. E que Estela não apenas perseguiria os responsáveis pela morte de sua filha e da apropriação de seu neto, mas sim a todos os que participaram dos crimes de terrorismo de Estado. “E eu não persigo nada além da justiça, da verdade e do encontro dos netos. Laura estaria falando 'você ganhou essa batalha'”.
Atrás de Estela, Tatiana Sfiligoy (Ruarte-Britos) chorava. Ela foi a primeira neta encontrada pelas Avós. Chorava também Lorena Battistiol, que procura seu irmão ou irmã desaparecido. E muitos jovens que recuperaram a identidade estavam rindo, tais como os deputados Juan Cabandié e Horacio Pietragalla, Victoria Montenegro, Francisco Madariaga e Guillermo Pérez Roisinblit. Também estava lá o secretário de Direitos Humanos, Martín Fresneda, ele mesmo um filho que busca o seu irmão, e o deputado Wado de Pedro, outro filho, assim como Carlos Pisoni, subsecretário de Promoção de Direitos Humanos. Os ministros da Justiça, Julio Alak; do trabalho, Carlos Tomada; e da Ciência e Tecnologia, Lino Barañao, também se aproximaram para acompanhar Estela.
A presidenta das Avós não quis dar informações sobre a família que criou seu neto, “talvez inocentemente”. Disse que sabiam quem o entregou, mas essa pessoa está morta. “Isso é para que os que ainda dizem 'basta', os que querem que esqueçamos, como se nada disso tivesse acontecido. É preciso continuar procurando para que todas as Avós sintam o que eu estou sentindo hoje. O que eu queria era não morrer sem abraçá-lo e conseguirei isso”, observou. Também contou que tem um monte de caixas cheias de camisetas e prendedores que juntou e guardou durante todos esses anos por todo o mundo “para que ele venha em quantos lugares o procuramos”.
Estela agradeceu a Deus, a suas companheiras, aos netos, ao povo e à democracia. E disse que o aparecimento de seu neto era uma vitória de todos os argentinos. Antes de terminar, saiu na sacada. Era uma pequena sacada que dava para a rua Virrey Cevallos, onde ficou as pessoas que não puderam entrar na casa das Avós – membros de organismos de direitos humanos, amigos, mas também vizinhos do bairro que se aproximaram para saudar Estela. Antes, a presidenta das Avós havia deixado claro que o encontro com seu neto não significaria nem diminuiria seu esforço e dedicação para procurar os 400 jovens que faltam, mas o contrário: “Os meninos estão, mais perto ou mais longe, estão esperando que nós os encontremos. A liberdade e o amor esperam por eles. Perguntam de onde eu tiro a minha força... de meus filhos, da Laura”.
Tradução: Daniella Cambaúva
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