(Foto: Carta Maior) |
Era agosto de 1978. A última vez que tivera notícias de sua filha foi em 16 de novembro de 1977, quando a chamou na escola onde Estela trabalhava.
Por Irina Hauser - reproduzido do portal Carta Maior, de 06/08/2014Era de noite quando Estela de Carlotto e seu marido, Guido, chegaram à delegacia de Isidro Casanova. Levavam um papelzinho com a convocatória, que dizia: “Convocam-se os progenitores de Laura Carlotto em caráter de urgência”. O delegado que os atendeu os levou ao escritório, abriu uma gaveta e tirou uma Libreta Cívica. “Conhecem essa pessoa?”, perguntou automaticamente. Essa foto, uma 4x4, a última de Laura com vida. Mostrava-a com os olhos carregados de maquiagem, a pele radiante, o cabelo escorrido e escuro. “Sim, é a Laura”, reconheceu Estela. “Bom, então lamento lhes informar que ela faleceu”, disse o policial, indolente. No caminho para a seccional, haviam imaginado em voz alta todas as hipóteses junto com Ricardo, o padrinho. Imaginavam que talvez ela estivesse presa ali, ou que a colocariam à disposição do Poder Executivo, talvez até voltariam para casa com seu bebê, Guido. “Não será possível que esses desgraçados nos digam o pior”, pensavam.
Estela repassou essa cena com a polícia há dois meses, quando falou diante do Tribunal Oral Federal Nº1 de La Plata, no julgamento pelos crimes cometidos no centro clandestino La Cacha, onde sua filha Laura esteve sequestrada. Ela se lembrou de si mesma gritando com loucura: “Assassinos! Vocês a mataram! Como assim, faleceu? Canalhas! Onde está o bebê?”. Era agosto de 1978. A última vez que tivera notícias de sua filha foi em 16 de novembro de 1977, quando a chamou na escola onde Estela trabalhava. Naquela época, Laura militava nos Montoneros e vivia de forma clandestina. Ela ligava e escrevia uma vez por semana. Naquela ocasião, contou que se sentia indisposta e que iria ao ginecologista. Havia perdido duas gravidezes anteriormente. Depois de dez dias sem notícias, Estela amanheceu com a certeza de que alguma coisa tinha acontecido.
Laura, a mais velha de quatro irmãos, estudava história na Universidade La Plata. Seu interesse pela política e a militância teve muito a ver com sua professora de história, Irma Zucchi, que está desaparecida. Era admirada pela forma de ensinar e questionar os fatos, e de pedir aos alunos que não memorizassem sem compreender. Laura acordava muito cedo para ir trabalhar na fábrica de pintura de seu pai, em Berisso. Desfrutava do contato com os trabalhadores e das conversas com seu pai, que era um homem informado. Ele detestava “a Igreja e os militares”, conta a jornalista María Eugenia Ludueña no livro Laura, vida e militância de Laura Carlotto.
Nos últimos dois cafés que tomou com sua mãe, Laura disse: “Viver é a coisa mais linda que existe. Eu quero viver. Que todos possamos viver bem. Ninguém quer morrer. Mas seguramente milhares de nós morreremos...”. Não queria ir, apesar das súplicas de seus pais. Laura pintava paredes e objetos. O livro de Ludueña a descreve como uma militante de base bonita e aguerrida, lúcida, sensível, convencida e valente, talvez um pouco ofuscada dentro de uma estrutura vertical e machista da organização, mas dona de todas essas qualidades, que compartilhava com suas companheiras de cativeiro.
Estela e Guido desconheciam o paradeiro de Laura. No outono de 1978, uma mulher entrou na fábrica de pintura e contou que a haviam liberado de um campo de concentração fazia cinco dias. Disse que estivera com Laura, que ela estava bem, com uma barriga de seis meses e meio e que, por isso, às vezes a alimentavam melhor. Informou que Laura havia pedido que ela fosse visitá-los para lhes dizer que seu bebê nasceria em junho, e que ficassem atentos à “Casa Cuna”. Seu desejo era que o bebê fosse homem e que seu nome fosse Guido.
Em La Cacha, Laura era conhecida por seu apelido, Rita. Quando começou o trabalho de parto, nas rádios do centro clandestino se escutavam os jogos da Copa de 1978, e a final era entre Argentina e Holanda. Ela caminhava e praticava as respirações que outra das detentas, Rosita, a havia ensinado. Esses dias de Laura, e os que vieram depois, montariam um quebra-cabeças no relato de uns poucos sobreviventes em La Cacha: Norma Aquin, María Inés Paleo, Alcira Ríos, Luis Córdoba e María Laura Bretal.
Um dos guardas avisou a outros detentos quando laura deu à luz. Disse que era um menino, que tudo estava bem e que ela seria enviada a um sítio. Logo a devolveram a La Cacha, embora tenha ficado em um “chalezinho”, sem contato com o resto. Ludueña diz em seu livro que davam um jeito de se conversar e que ela havia passado os últimos dias sem seu bebê, que acreditava ter parido em um hospital do Exército, longe dali, e que ela tinha subido a algum lugar em um elevador, visto guardas armados zelando pelo local. Pariu acorrentada e encapuzada. E sussurrou o nome do bebê em seu ouvido: “Guido, como seu avô”. Como resistia a entregá-lo, fizeram-na dormir e o levaram. Depois, mentiram e disseram que ele tinha sido entregue à mãe dela, Estela.
Em 24 de agosto, disseram a Laura que sua situação estava “por resolver”, que a levariam à ESMA e fariam um Conselho de Guerra. Ela consegue se despedir de todos. Pede a Alcira para levar alguma lembrança e fica com seu sutiã preto. Ela estava com esse sutiã quando seu pai foi reconhecer o corpo, no furgão estacionado junto à delegacia de Isidro Casanova. Tinha o rosto desfigurado por um tipo, meias verdes e esse sutiã. “Guido a beijou, acariciou seu rosto e ficou alguns minutos a sós com ela, contemplando-a sem pronunciar qualquer palavra. Depois voltou, entrou na delegacia e abraçou Estela”, relata Ludueña em seu livro. Laura tinha 23 anos e fora assassinada na estrada da província de Buenos Aires.
Quando Estela ainda pensava que talvez chegasse um dia em que Guido recuperaria sua identidade sem que ela chegasse a conhecê-lo, ela escreveu: “Sou a mãe de Laura. A primeira filha, a sonhada, a querida, a esperada, igual aos outros três que vieram depois. Mas ela foi um tanto especial pela vida que viveu: uma vida curta, intensa, com muito conteúdo”.
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