Pai
carrega uma das 10 crianças mortas por um míssil, na segunda-feira, dia 28, em
Gaza, enquanto brincavam num campo de refugiados (Foto: EFE/Página/12)
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John Quincy Adams, sexto
presidente dos EUA, disse que “os Estados Unidos não têm amizades permanentes,
mas sim interesses permanentes”, uma frase repetida até o cansaço por outro
criminoso de guerra, Henry Kissinger. Seria bom que as autoridades israelenses,
que dão por garantido um apoio indefinido de Washington a suas políticas,
meditassem sobre este assunto.
Por Atilio A. Boron, cientista político argentino – traduzido do jornal
Página/12, edição de ontem, dia 29
O que
está acontecendo em Gaza? O governo de Israel, um estado que submete a um
injusto, cruel e desumano bloqueio um diminuto território palestino às margens
do Mediterrâneo, decidiu aplicar um castigo exemplar pelo assassinato de três jovens
colonos judeus supostamente perpetrado pelo Hamas. Sem provas minimamente
convincentes e em meio a uma suspeita operação policial, Jerusalém acusou essa
organização do ocorrido com o propósito – como o reconhecera dias atrás um
apologista de Israel dentro dos Estados Unidos, Zbigniew Brzezinski – de
“agitar a opinião pública em Israel para que justifique seu ataque a Gaza”. E isso
foi o que ocorreu: crianças, anciãos, mulheres e homens caem sob o fogo de sua
metralha. Para Netanyahu e seu bando em Gaza todos são terroristas, mais além
de suas aparências. Um dos chefes da ditadura genocida na Argentina, Ibérico
Saint Jean, disse que “primeiro vamos matar todos os subversivos, depois seus
colaboradores; depois os indiferentes e por último os tímidos”. O governo
israelense inverteu essa sequência e começou pela população civil, gente cujo
único crime era viver em Gaza, e cometeu um delito ao aplicar uma penalidade
coletiva para um crime perpetrado por alguns indivíduos.
Depois
deste brutal e instrutivo escarmento invadiram Gaza para aniquilar os
terroristas e seus colaboradores. Israel sabe que o rudimentar e escasso
armamento do Hamas apenas podia lhe causar danos de alguma significação. Suas
ameaças de destruir o Estado de Israel são bravatas que não correspondem nem
remotamente ao seu poder efetivo de fogo. Porém são muito úteis na guerra
psicológica: servem para aterrorizar a população israelense e assim obter seu
consentimento para o genocídio e a ocupação dos territórios palestinos. E também
para que os Estados Unidos e os países europeus aportem todo tipo de armamentos
e amparem politicamente o regime. Justamente nestes dias Israel solicitou a
Washington a entrega de 225 milhões de dólares adicionais para financiar a
produção de componentes de seu escudo antimísseis, conhecido como “Cúpula de Ferro”.
O secretário de Defesa dos EUA remeteu uma mensagem ao Senado e à Câmara dos
Representantes urgindo a rápida aprovação da petição israelense. Se for aprovada
a ajuda dos EUA para estes propósitos ascenderia, só em 2014, a 500 milhões de
dólares. A ajuda militar, de qualquer fonte, que recebe o Hamas é zero. A
desproporção de forças é tão flagrante que falar duma “guerra” é uma burla
macabra. Disse Marco Aurélio Garcia, assessor especial da presidenta Dilma
Rousseff: “O que estamos vendo no Oriente Médio, pelo amor de Deus, é um genocídio,
é um massacre”.
(Foto: Página/12) |
E é assim
porque Gaza não tem exército, não se lhe permitiu que o tenha. Israel tem um
dos melhores do mundo, apetrechado com a mais sofisticada tecnologia bélica que
lhe proporcionam Washington e as velhas potências coloniais europeias. Gaza
tampouco tem uma aviação para vigiar seu espaço aéreo ou uma frota que guarde seu
mar e suas praias. Os drones e helicópteros israelenses sobrevoam Gaza sem
temor e disparam seus mísseis sem se preocuparem pelo fogo inimigo, porque não
há fogo inimigo. As novas tecnologias bélicas lhe permitiram “aperfeiçoar” o
que Hitler fez em Guernica. Em sua fúria assassina bombardearam casas, escolas,
hospitais, recintos da ONU. Seus poderosos aliados (cúmplices de seus crimes) avalizam
qualquer atrocidade. Já o fizeram antes, e não apenas com Israel, e o farão quantas
vezes seja necessário. Sua má consciência joga a favor deste plano genocida:
calaram vergonhosamente durante a Shoá perpetrada por Hitler diante da vista e
paciência de todo o mundo, do papa Pio XII até Franklin D. Roosevelt e Winston
Churchill. Calaram também diante do genocídio que metódica e periodicamente se
está consumando em Gaza, porque matar palestinos a salvo (sem correr qualquer
risco) é isso: um genocídio.
O
Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional estabeleceu em 1998 que “se
entenderá por ‘genocídio’ qualquer dos atos mencionados a seguir, perpetrados
com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso como tal: a) matança de membros do grupo; b) lesão grave à
integridade física ou mental dos membros do grupo; c) submissão intencional do
grupo a condições de existência que levam a provocar sua destruição física,
total ou parcial”. O governo israelense incorre nos três componentes da definição.
O problema para o Estado de Israel, ao menos em sua atual conformação, é que
raramente o genocídio tem sido um caminho para a vitória. Hitler assassinou
seis milhões de judeus nos fornos crematórios e terminou esmagado por seus inimigos.
Por que pensar que este genocídio terá um resultado diferente? É talvez por isso
que na entrevista já mencionada Brzezinski afirmou que com suas políticas
Netanyahu “está isolando Israel e pondo em perigo seu futuro a longo prazo”.
Afortunadamente,
dentro de Israel há setores que reprovam com duríssimos termos a conduta
seguida em Gaza: um grupo denominado “Judeus contra o genocídio”, o Partido
Comunista de Israel junto com a Frente Democrática pela Paz e a (Hadash) condenaram
os crimes perpetrados em Gaza e defendem, ademais, a legitimidade da resistência
de qualquer território ocupado. Mas há outros que pregam a aniquilação dos
palestinos, como Ayelet Shaked, a deputada que instou as forças de ocupação a
matar as mães palestinas porque engendram serpentes terroristas. E a partir do
governo israelense se trabalha para fomentar a desumanização do “outro” árabe. Os
grandes meios de comunicação e as escolas ensinam as crianças israelenses a
odiar seus indesejáveis vizinhos, degradados à condição duma raça desprezível. Para
envolvê-las no esforço bélico são convidadas a escrever mensagens de morte nos
mísseis que lançam suas forças armadas. Outras crianças serão os que cairão mortos
por esses projéteis amorosamente dedicados por seus contrapartes israelenses.
(Foto: Página/12) |
Este
comportamento é um insulto à grande tradição humanista do povo judeu, que começa
com os profetas bíblicos, segue com Moisés, Abraão, Jesus Cristo e passa por
Avicena, Maimónides, Baruch Spinoza, Sigmund Freud, Albert Einstein, Martin
Buber até chegar a Erich Fromm, Claude Lévi-Strauss, Hannah Arendt e Noam
Chomsky. Ou com extraordinários judeus que enriqueceram o acervo cultural da
Argentina como León Rozitchner, Juan Gelman, Alberto Szpunberg e Daniel
Barenboim, entre tantos outros que seria muito extenso nomear aqui. A traição
aos grandes ideais que o judaísmo aportou à humanidade não será gratuita. Com
sua criminosa covardia, com seus delitos de lesa humanidade, com suas práticas
próprias do “terrorismo de Estado”, com a violação da legalidade internacional
(desacatando a resolução Nº 242, de novembro de 1967, do Conselho de Segurança
da ONU, que por unanimidade exige que Israel se retire dos territórios ocupados
durante a Guerra dos Seis Dias de 1967), as autoridades israelenses estão infringindo
um duríssimo golpe à sustentabilidade a longo prazo do estado de Israel. Seu isolamento
na Assembleia Geral da ONU é patético, exemplificado por seu sistemático e
solitário acompanhamento aos Estados Unidos nas votações sobre o bloqueio imposto
a Cuba.
Inclusive
seus mais incondicionais amigos, como Mario Vargas Llosa, não economizam
críticas: depois de visitar Gaza em 2005 disse no jornal espanhol El País: “Ninguém
me contou, não sou vítima de nenhum preconceito contra Israel, um país que
sempre defendi... vi com meus próprios olhos. E me senti enojado e revoltado pela
miséria atroz, indescritível, em que definham, sem trabalho, sem futuro, sem
espaço vital, nos becos estreitos e imundos dos campos de refugiados ou nessas
cidades abarrotadas de gente e cobertas pelo lixo, onde passeiam os ratos à
vista e tolerância dos transeuntes, essas famílias palestinas condenadas a
somente vegetar, a esperar que a morte venha por fim a essa existência sem
esperança, de absoluta desumanidade, que é a sua. São esses pobres infelizes, crianças
e velhos e jovens, privados já de tudo o que faz humana a vida, condenados a uma
agonia tão injusta e tão larval como a dos judeus nos guetos da Europa nazista,
os que agora estão sendo massacrados pelos caças e tanques de Israel, sem que isso
sirva para aproximar um milímetro a ansiada paz”.
Parece pouco
provável que o infernal aparato bélico israelense possa fazer uma trégua e
refletir sobre o significado desta traição aos ideais do humanismo judeu. Um
racismo doentio se apoderou dos círculos dominantes na sociedade israelense que
a inibe de reagir ante as monstruosidades perpetradas contra os palestinos em
Gaza ou ante a construção de um ignominioso muro na Cisjordânia, ou ante a
perpetuação e aprofundamento das políticas de usurpação e saque colonial. Os
horrores padecidos sob o nazismo pareceriam ser suficientes para justificar o
que é claramente injustificável e imperdoável. Será assim? Porém, em caso
afirmativo, a questão é: por quanto tempo? Pergunta pertinente se se recorda o
dictum de John Quincy Adams, sexto presidente dos EUA, quando disse que “os Estados
Unidos não têm amizades permanentes, mas sim interesses permanentes”, uma frase
repetida até o cansaço por outro criminoso de guerra, Henry Kissinger. Seria bom
que as autoridades israelenses, que dão por garantido um apoio indefinido de
Washington a suas políticas, meditassem sobre este assunto.
Tradução: Jadson Oliveira
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