Todos vivemos em sociedade e
temos um modelo implícito do que é bom e do que é mau para a sociedade, mesmo
que nunca tenhamos dito uma palavra específica sobre o sistema político.
Por Roberto Follari (*), no jornal argentino Página/12, edição de ontem, dia 3
Todos
temos ideologia. A crença de que a ideologia é questão somente dos que se
interessam por política é uma ingenuidade. Como professor de Teoria do Conhecimento,
não me canso de ensinar a meus alunos universitários que a ideologia mais forte
é a daqueles que acreditam não tê-la.
É que a
ideologia não é uma ideia acerca da política, e sim as noções que todos temos –
e nem sempre de maneira plenamente consciente – sobre o que é a sociedade, o
que é o indivíduo, o que é a justiça social, o que é poder, etc, etc. Para sustentar
essas ideias, não se requer pensar explicitamente em política. Todos vivemos em
sociedade e temos um modelo implícito do que é bom e do que é mau para a
sociedade, mesmo que nunca tenhamos dito uma palavra específica sobre o sistema
político.
Assim, não
existem as pessoas “independentes”, não há quem não responda a ideologia alguma.
Todos dependemos de nossas ideias, e – o pior – é que nem todos somos
conscientes de que as temos e muito menos qual é a origem delas, não sabemos frequentemente
por que pensamos como pensamos.
As ideias
não nos caem do céu nem nos vêm do interior da nossa própria cabeça. São o
resultante duma série de influências que passamos em nossa vida: a camada
social à qual pertencemos, o gênero, a época, as escolas que frequentamos, as
igrejas com as quais tivemos ligações, os clubes, os amigos. Todos eles fizeram
algo para que sejamos os que somos. Ninguém se inventa a si mesmo: no frigir
dos ovos, cada um recombina à sua maneira as ideias que não se produziram por si
só.
Se
tivéssemos nascido na África do Sul e não na Argentina, pensaríamos de forma
muito diferente. Se tivéssemos nascido nos tempos de Péricles na Grécia Antiga,
teríamos aceito a escravidão como natural. Se tivéssemos nascido na Arábia
Saudita, seríamos muito provavelmente muçulmanos. Somos o fruto das nossas
condições concretas de vida, não o das nossas elucubrações individuais.
Então, não
há pessoas que tenham ideologia e outras que possam ufanar-se de não tê-la; estes
últimos costumam crer – erroneamente – que possam colocar-se “acima” dos que assumem
explicitamente sua ideologia. Na verdade, ideologia temos
todos nós. Existem os
que sabem que a têm, e por isso podem racionalizar sobre ela, modificá-la. Ao
contrário, os que se creem “independentes” nem sequer se inteiraram da ideologia
que professam. Portanto costumam acreditar, com ingenuidade comovedora, que eles
dizem “como são as coisas”, que suas opiniões são neutras e objetivas. Dessa
maneira, confundem o modo singular com que suas lentes lhes fazem ver a
realidade, com a própria realidade.
Acontece
com alguma veterana comensal da TV que acredita que a sociedade é igual aos horizontes
de Recoleta ou Bairro Norte (bairros de gente abastada), em Buenos Aires. Como
ela vive ali e suas amigas são senhoras endinheiradas que tomam o chá em
momentos de ócio, ela vive numa redoma, mas acredita que todo mundo pensa como
se pensa nesse lugar. Ela fala com “a gente”, e essa gente – somente essa,
claro – pensa igual a ela. De tal modo que acredita que o mundo é idêntico a
como ela o vê, ainda que o olhe por uma fenda mínima que pouquíssimos – com esse
poder aquisitivo – podem compartilhar.
De modo a
se encher de orgulho de que “penso por mim mesmo”, “não sou militante de nada”,
“digo as coisas como elas são” e semelhantes mostras de desconhecer como é que são
formadas as próprias ideias que todos carregamos. Quem diz essas coisas e
acredita não ser dogmático por não se alinhar explicitamente a uma ideologia
política é duplamente dogmático: não somente tem um pensamento determinado e uma
perspectiva parcial (jamais poderia ser de outra maneira, para os seres
humanos), mas que nem sequer se inteira disso. Acredita que sua singular visão
do mundo é igual ao mundo mesmo. Por isso não tem a menor possibilidade de reagir
frente a suas próprias distorções, de modificar seu pensamento ou de aperfeiçoá-lo.
Confunde sua própria visão com os objetos que capta através dela.
Então,
aqueles que dizem não ter ideologia e se creem livres dela estão instalados no
dogma e no acrítico em total plenitude, em nome da pretendida “independência de
pensamento” a que tantas vezes se apela, sobretudo numa TV nacional cada vez mais
ignorante e baratinada. (NT: Referência certamente à emissora de TV do Grupo
Clarín, o grande monopólio das comunicações de lá, semelhante à Rede Globo
aqui, com a diferença de que lá o monopólio está sendo quebrado graças à famosa
Ley de Medios).
* Doutor em Filosofia.
Universidade Nacional de Cuyo.
Tradução: Jadson Oliveira
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