ANA HELENA TAVARES: O VIOLÃO E A SOLIDÃO



Sérgio Ricardo aos 80 anos (Foto: Internet)
Colunista lembra a composição de Sérgio Ricardo em homenagem a Garrincha e o violão que quebrou no Festival da Canção

Por Ana Helena Tavares, do Rio de Janeiro, no site Direto da Redação, de 18/06/2014

Sérgio Ricardo, nome artístico de João Luft, quebrou um violão num festival da canção nos anos 60 e ficou com a vida inteira marcada por aquele ato. Mas remendou-se, reconstruiu-se, reinventou-se.

Naquele dia, ele estava cantando sua música “Beto bom de bola”, em homenagem a Garrincha. Essa música poderia estar hoje tocando em especiais sobre a Copa no Brasil. No entanto, por inúmeros fatores, inclusive pela opção de não ceder ao mercado, Sérgio Ricardo juntou os cacos de sua arte longe dos grandes holofotes.

Neste junho de 2014, tive oportunidade de estar na casa de Sérgio Ricardo, que hoje se recupera de uma cirurgia no fêmur – e até os ossos do corpo ele está remendando, sem deixar de sonhar. Mora no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, e orgulha-se disso. “Aqui encontrei muitos artistas”, garante. É amado pela comunidade e pode deixar as portas de sua residência abertas que nada lhe acontece.

Artista completo (compositor, letrista, cineasta, ator e pintor), ele encontrou também, de sua janela, uma bela vista para o mar do Leblon. Estive lá para entrevistá-lo – último de uma série que virará livro com quase trinta entrevistas com pessoas que viveram a ditadura. Por ironia do destino, ele mora na Av. João Goulart. E ali, naquela avenida num morro, eu vi mais paz que no asfalto.

Voltando para a casa, nova ironia do destino. O taxista foi, por oito anos, segurança pessoal de um dos netos de Roberto Marinho. Descobri isso ao falarmos de corrupção no Brasil. Disparei: fala-se que os políticos são corruptos, mas nossa sociedade é corrupta, nossa mídia é corrupta. E o taxista, ex-vigilante, disparou de volta: “nossa mídia só tem dinheiro, não tem felicidade”.

O que isso tem a ver com o que vi e ouvi nas quase quatro horas em que fiquei conversando com um homem genial hoje renegado pela mídia? Parece-me que tudo. O taxista, ex-vigilante, teve oportunidade, pelo trânsito que pegamos, de me contar como acha triste a vida de quem é criado sem saber o que é liberdade. Ninguém na poderosa família Marinho, grande monopolizadora da nossa mídia, anda sem seguranças, ninguém ali “sabe o valor do dinheiro”, garantiu o hoje taxista.

Quando era vigilante de um dos netos do “Dr. Roberto”, ele não podia passar da cozinha da casa, mas não pôde deixar de ouvir as várias vezes em que a criança disse que só queria um abraço do pai – e não o tinha. Muito ocupado é o filho mais velho do homem que andou de braços dados com Figueiredo.

É preciso que se diga que o cenário de solidão descrito é comum a muitas famílias ricas. Não têm tempo para vislumbrar o mar de uma janela no Vidigal, não têm tempo para mostrar aos filhos que o mundo vai além das janelas à prova de bala. Será que têm tempo para ir com os filhos ao Maracanã? Será que sabem se o filho é bom de bola?

O violão de Sérgio Ricardo está intacto e ele anda por aí sorridente. Os estragos feitos por uma mídia oligopolizada e por uma infância solitária podem ser irreversíveis.

Ana Helena Tavares, jornalista, conhecida por seu site de jornalismo político Quem tem medo da democracia?, com artigos publicados no Observatório da Imprensa e na extinta revista eletrônica Médio Paraíba. Foi assessora de imprensa e repórter dos Sindicatos dos Policiais Civis e dos Vigilantes. Universitária, entrevistou numerosas pessoas que resistiram à ditadura e seus relatos (alguns publicados na Carta Capital e Brasil de Fato serão publicados brevemente num livro.

Direto da Redação é editado diariamente pelo jornalista Rui Martins.

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